domingo, 29 de junho de 2008

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN

“Caixinha de Surpresas”: Uma resenha de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”.

Por Olavo Duarte

Atenção : este texto contém "spoilers", revelações sobre o enredo do filme. Se você ainda não o assistiu, fica a seu critério prosseguir ou não na leitura.



O que você faria se encontrasse uma caixa cheia de objetos que pertenceram a uma criança que morou no seu apartamento a quarenta anos atrás? Talvez você não desse importância nenhuma ao fato. Coisa sem valor, você diria. Mas se seu nome é Amélie Poulain e você é a protagonista do ótimo “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001, direção de Jean Pierre Jeunet, com Audrey Tautou e Mathieu Kassowitz) encontrar o dono da tal caixinha torna-se uma missão. Amélie vive só em um pequeno apartamento alugado no simpático bairro parisiense de Montmartre e trabalha como garçonete numa cafeteira do bairro, o Deux Moulins. Nada de mais extraordinário acontece na vida da sonhadora e tímida Amélie, a não ser a convivência com os esquisitos freqüentadores do botequim. Uma é hipocondríaca e atende numa pequena banca de cigarros. Um vive vigiando a vida da ex-namorada que também trabalha na cafeteira. Outro é um escritor fracassado e melancólico; outro é... era de se esperar que no meio de tanta gente maluca, absurdamente solitária e desencantada, não poderíamos ser brindados nunca com um grande filme. Mas somos. Amélie já não vem de um prognóstico familiar muito promissor: seu pai, Raphaël Poulain, vive recluso na periferia de Paris desde a morte da mulher e prefere a companhia de um anão de jardim a de outros seres humanos. Quando criança, Amélie nunca tivera muito contato com o mundo exterior. Seu único “amigo” era um peixinho de aquário chamado “Cachalote”. Trancada em casa, sem amigos, desenvolve uma prodigiosa imaginação, uma visão poética do mundo que ela carrega nas malas quando decide sair de casa aos dezoito anos e ganhar a vida por conta própria. Até o episódio da caixinha de brinquedos, sua vida transcorre sem grandes acontecimentos. Decidida a encontrar o dono dos objetos, ela sai procurando pelas ruas de Paris um tal Bredoteau. Ela pergunta o endereço para o dono de uma quitandinha na rua, Collignon (Urban Cancellier), um sujeito desprezível e mal-educado, que sublima a sua frustração com tudo e todos humilhando o empregado Lucien (Jamel Debbouze). Mas a procura parece caminhar para o fracasso até que Amélie esbarra com mais um inusitado personagem: o velho do apartamento ao lado, outro recluso e solitário parisiense chamado Raymond Dufayel (Serge Merlin), um obscuro pintor, portador de uma doença óssea rara que o torna frágil como um graveto. Dufayel, conhecido como “homem de vidro”, é obcecado por uma obra de Renoir chamada “Almoço com Barqueiros” e, mais especificamente, com a personagem que ocupa o centro da composição, uma jovem com um copo d’água (veja a figura abaixo) não por acaso muito parecida com nossa heroína.



O homem de vidro dá a Amélie a chave do enigma: o homem que procurava não é “Bredoteau” e sim, “Bretodeau”, com “to” e não “do”, como em “toto”.
Enfim, Amélie tinha a chance de mudar a história. Sem se deixar ver, ela provoca uma reviravolta na vida do desiludido Bretodeau. A na sua própria. Na do espectador também.
A partir dessa quase banal fatalidade, Amélie passa a se interessar pelo cotidiano das pessoas a sua volta e, sempre anonimamente e com estratagemas geniais, interferir nos pequenos – e grandes - dramas dessas pessoas. Assim, Amélie não vê problemas e obstáculos em copiar as chaves do apartamento do malvado Collignon e vingar, com requintes de crueldade, as humilhações que este impõe ao pobre Lucien; coisas do tipo trocar a pasta de dente do quitandeiro por um creme para pés, botar o relógio para despertar às quatro da manhã, fazer de um prosaico abajur uma verdadeira máquina de eletrochoque. Afinal, se depender da nossa amiguinha, ninguém sofre, ninguém vive só, ninguém é humilhado. Tanto é assim que ela chega a inventar que a tal hipocondríaca, Georgette (Isabelle Nanty) está interessada no ciumento Joseph (Dominique Pinon) – o que vive vigiando a rotina da ex-namorada. A vida no monótono Deux Moulins nunca mais será a mesma. E ninguém sabe quem foi o anjo da guarda que está causando tantas revoluções, juntando pessoas, encontrando caixas perdidas, vingando o sofrimento alheio. E ela está bem ali, aquele rostinho tímido e inocente. E ninguém sabe também que a própria Amélie se refugia na solidão e não está feliz por causa disso. Ela própria, a despeito de fazer a felicidade de todo mundo, está se sentindo só, não espera encontrar ninguém com quem dividir seu famoso bolo de nozes, ninguém para chegar em casa e abrir a porta, ninguém para brincar com seu gato.
E ela também não sabe que um belo dia, não sem antes, como de costume, “fazer o bem sem olhar a quem”, se atrasa no serviço e não consegue chegar no metrô em tempo de pegar o último trem pra casa. Bom, o jeito é achar um lugar pra dormir. Logo ali tem uma cabine de foto, dessas automáticas. A noite, é claro, não é das melhores. Só que o acaso, sempre ele, tem um efeito devastador na vida de qualquer ser humano. Quem poderia adivinhar que no caminho ela ia dar de cara com o esquisito Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz), remexendo embaixo da cabine com uma régua e recolhendo pedaços de fotos rasgadas? Fora esse estranhamento inicial, Amélie não teria visto de novo jamais o rapaz se uma irresistível curiosidade não a levasse a segui-lo: no caminho, Nino perde acidentalmente uma bolsa e – claro e de novo – o destino fabuloso calha de colocá-la nas mãos de nossa heroína. Rever o rapaz torna-se mais uma das obsessões de Amélie. Só que ela quer negar pra si mesma que é um tal de “amor a primeira vista”, coisa em que ninguém mais acredita hoje em dia. Todos nós sabemos que ela se apaixonou de imediato pelo sujeito, com quem parece compartilhar a estranhice. Só loucos mesmo colecionam fotos rasgadas 3x4 de estranhos metodicamente reconstituídas e coladas em ordem cronológica e geográfica. Só loucos mesmo trabalham de balconista numa sex-shop e, às quartas, num trem-fastasma (a cena mais sensual e linda do filme). Nino é o par perfeito de Amélie. Só que Nino também ignora quem é a moça que anonimamente – de novo – faz chegar a suas mãos o tal álbum. E arde de curiosidade – apaixonada como tudo que é mistério – em conhecê-la. Só que a garota coloca o cara num labirinto e dá uma de Ariadne às avessas: mais confunde e propõe enigmas do que tenta resolvê-los para tranqüilizar a si mesma e a seu ansioso coração. Assim, o jogo de gato e rato envolve todos os personagens da história: o “homem de vidro”, o garoto Lucien, a colega de Nino na sex-shop (Eva) e outros anônimos, todos dão sua parcela de contribuição para aproximar o casal. Dessa vez, não é Amélie que se envolve com os problemas do mundo, mas é o mundo quem se encarrega de dar o caminho para Amélie passar. E levá-la aos braços de seu Nino.
Tudo bem, parece sim – e é – uma historinha água-com-açúcar –feita sob medida para românticos – mas qual é o problema? Críticos carrancudos a chamaram de “Madre Teresa” made in Paris. Num tempo em que o “my, myself and I” é a regra, uma pessoa que entrega o coração aos estranhos é mesmo um alienígena. Ainda mais se a pessoa em questão se sente só contra o mundo: a tentação é de encarar tudo com raiva, de jogar na cara dos outros a própria incompetência afetiva, a frustração amorosa, o fracasso profissional. Poucos devolvem em ternura, em afeto a cara feia do mundo exterior. Poucos inventam cartas de amor para juntar dois desconhecidos, poucos ajudam um cego a “ver” a rua. Amélie Poulain é a prova – ainda que ficcional – de que o mundo tem jeito. Bastam um pouquinho de imaginação, cola, papel e tesoura. E uma caixinha de metal enferrujada. Não é muito difícil ser feliz.

Assista ao trailer no Youtube:
(um comentário sobre esse trailer: as legendas em português - não devem ser as legendas originais do VHS/DVD - trazem um erro grave. Lucien fala a Dufayel sobre um (ou uma) tal Le Didi. Não é nada disso: na verdade, o comentário é sobre Lady Di, a princesa britânica, cuja morte em Paris, em agosto de 1997, é um dos motes da trama.)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

ESPAÇO E TEMPO

DE vez em quando
ela sai um pouco do meu pensamento
para voltar mais do que depressa

E quando me faz esquecer da vida por um momento,
também me desperta,
quando reaparece na página seguinte

Os lugares dela vem até a mim no meu caminho -
quando corro para trás para vê-la no passado.

UM DIA A CIDADE VAI PARAR



Eles vêm de todos os lados: alguns são grandões e outros bem pequenininhos; são todos muito atrevidos, muito barulhentos, muito mal educados. Costumam chegar sem avisar, e passar sem pedir licença. Quando um esbarra no outro, é aquela confusão. De repente, todos páram e, sem saber o motivo, começam a discutir entre si para ver quem tem razão, quando todos estão errados. O nome desse animal é automóvel. Essa praga urbana está se disseminando com uma rapidez impressionante, a cada dia invade as metrópoles do país com mais avidez, tomando todos os espaços. Estes espécimes carregam dentro de si um outro animalzinho ainda mais agresivo e arrogante chamado ser humano, talvez ele o mais culpado pela disseminação dessas feras de metal do qual se apoderam - ou pelas quais se deixam apoderar, vivendo uma perturbadora relação de dependência: muitas vezes não dá para saber quem toma conta de quem. O fato é que essa doença urbana um dia pode paralisar a cidade, deixá-la asfixiada, matá-la por infarto - não é por acaso que se diz que quando o trânsito está parado as "artérias" estão "congestionadas".

segunda-feira, 23 de junho de 2008

BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS




Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, Estados Unidos, 2004, 108 min, direção por Michel Gondry, roteiro por Charlie Kaufman, Michel Gondry e Pierre Bismuth; com Jim Carrey, Kate Winslet, Mark Ruffalo, Tom Wilkinson, Kirsten Dunst, Elijah Wood; Disponível em DVD)

A maioria das pessoas que eu conheço (pelo menos aquelas que se dizem "normais") costumam apagar os sinais das suas antigas relações afetivas, aquelas que "terminaram" por algum motivo. No começo, de fato, é tudo bonito naquele(a) que escolhemos dentre os(as) outros; mas, com o tempo, a gente vai descobrindo -conhecendo - melhor as pessoas. Daí, vêm as incongruências, as incompatibilidades, as picuinhas; são pequenas coisas, "detalhes tão pequenos de nós dois" que, no conjunto, podem levar o relacionamento todo para o brejo. Então, aquelas demonstrações cotidianas de afeto, representadas pelos bilhetes apressados, pelas longas cartas, pelas fotografias, pelos pequenos presentes, pelo papel de embrulhar o presente como se ele fosse uma relíquia histórica, todos os objetos que em conjunto contam o conto de um relacionamento, vão todos eles impiedosamente para a lata de lixo; como se o ato de se desfazer desses elementos físicos fosse deletar o que ficou gravado, fotografado e impresso no coração. Como se a memória afetiva não fosse nada mais que um disco rígido que pudesse ser simplesmente "formatado", ficando pronto para outra assim de uma hora para outra. Não é tão fácil assim: as nossas lembranças mais preciosas têm muito a ver com as pessoas que conhecemos e que amamos na vida, e o esquecimento - ou a tentativa de - nos fazem mais pobres como seres humanos. As experiências afetivas que vivemos, por mais traumáticas ou perturbadoras que possam ter sido, ou por mais sublimes que poderiam ser, são como nos diz o poeta Goethe: "Somos moldados e formados por aqueles a quem amamos"
Digo tudo isso para falar sobre este "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" que, a começar pelo longo título, versão literal do título original em inglês, Eternal Sunshine of the Spotless Mind, é um filme incomum pela proposta, também ela bastante original, pela direção competente de Michel Gondry e, sobretudo, pelo inteligentíssimo roteiro de Charlie Kaufman. Vamos aos fatos: Clementine Kruczynski(Kate Winslet)e Joel Barish (Jim Carrey, em um dos pápéis em que não precisou de suas famosas caretas) estão em crise. Clementine é elétrica, esfuziante, muito "dona do seu nariz". Uma de suas muitas manias é trocar a cor dos cabelos, às quais dá os nomes mais esquisitos. Já Joel é mais "na dele": é tímido, calado, introspectivo, totalmente o oposto da sua extrovertida namorada. Poderia ser como qualquer casal que você conhece e que um dia se separa ("termina"), salvo um senão: Clementine, além de tudo, abandonou Joel também no pensamento. Um famoso psiquiatra, o Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson) inventou um método que literalmente "deleta" as lembranças amargas dos relacionamentos afetivos. O efeito colateral dessa técnica, no entanto, é apagar também a parte boa da história. Clementine aceita se submeter a esse procedimento e, de um dia para outro, Joel deixa de existir, ou melhor, parece nunca ter existido. Só que Joel, por acaso, descobre todo o esquema. Desesperado e desiludido, ele decide também se submeter à lavagem cerebral do Dr. Mierzwiak; afinal, se ela o esqueceu, porque ele também não a esquece? O que não se espera é que o "procedimento" falhe no meio. Mas é exatamente o que acontece. Joel percebe, no meio da viagem ao labirinto das suas lembranças, tentando se desfazer daquelas que lhe fizeram sofrer, para esquecer das brigas que não valiam a pena, das "acusações infantis e palavras mordazes" está deixando para trás também os momentos inesquecíveis, o som da voz de Clementine, o sorriso dela, aquelas loucuras e esquisitices, aqueles mesmos pequenos detalhes que faziam tanta diferença, que tornavam Clementine a pessoa mais linda do mundo. Ele se dá conta de que, se deixar para trás os bons e maus momentos, também pode abandonar a vida.

Assista ao videoclipe da canção original de "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" no Youtube:




"Everybody's Got To Learn Sometime"
Written by James Warren
Performed by Beck

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A Estranha Íntima

Eu descrevo o que não sei
Com palavras que não entendo
quando falo a teu respeito
Sobre o estranho sentimento
Por alguém que eu não conheço muito bem.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Obrigado, Ana

A minha amiga Ana, dos bons tempos de D.A.Letras/UFMG, me faz uma agradável visita. Ela até recomenda a minha "casa virtual" aos amigos que, se são amigos dela, são meus também; fico feliz que ela tenha gostado da estada aqui no meu mundo, e espero que ela tenha aproveitado a ocasião e que tenha levado consigo alguma coisa boa. Volta quando quiser, Ana. A casa é sua. Traz mais gente pra me visitar. As portas estão abertas dia e noite.

domingo, 1 de junho de 2008

UM PEQUENO ROMANCE



Lauren (Diane Lane), uma jovem estudante norte-americana, está entediada e aborrecida em Paris; mora com o padrasto, um rico empresário do setor de telefonia, e com a mãe que vive a flertar com um cineasta de quinta categoria metido a gênio; a garota prefere ficar estudando filosofia, aos embalos da cidade-luz. Daniel (Thelonius Bernard) vive também em Paris, junto com o pai autoritário e alcoólatra, que o trata com desprezo e arrogância; Daniel prefere passar os dias nos cinemas da cidade - sabe os dialógos dos westerns de cor - e fazendo apostas fictícias nos cavalos do Jockey Club (quase sempre "ganha" fortunas). Daniel tem um QI alto. Leu Heidegger, assim como Lauren. Fala inglês fluente, de tanto ver filmes americanos. Num dia desses, num desses encontros casuais, os dois se conhecem. Um pequeno e inocente romance surge entre eles. Se você está achando que o filme é só isso, ainda não conhece Julius, um velhinho simpático e elegante e cheio de histórias maravilhosas sobre si próprio, vivido pelo extraordinário Laurence Olivier. Ele conta ao jovem casal uma antiga lenda que afirma que se namorados se beijarem em uma gôndola sob a Ponte dos Suspiros em Veneza ao pôr-do-sol, ao som dos sinos do campanário, vão se amar para sempre. Mas como o "pra sempre sempre acaba", Lauren fica sabendo que os pais estão de partida para Houstoun, nos EUA, do outro lado do Atlântico. Daniel e Lauren, com a ajuda de Julius, decidem, sem os pais saberem, cumprir o que diz a lenda, partindo numa viagem desesperada e atrapalhada em busca da realização do amor que têm um pelo outro. Muito divertido, muito engraçado, muito poético e delicado.

A Little Romance, EUA, 1979, 108 min. Direção por George Roy Hill, com Diane Lane, Thelonius Bernard, Laurence Olivier. Disponível em DVD.

Noites Brancas: leia o livro, veja o filme, assista a peça, ouça a canção...




Trailer de Noites Brancas


Já falei aqui antes de Noites Brancas, a peça, com a Débora Fallabela e o Luiz Arthur. Já se sabe que eu sou suspeito para falar bem desse espetáculo, dadas as circunstâncias em que tomei contato com a linda e trágica história de amor do Sonhador Sem Nome e da menina Nastenka em São Peterburgo e com que intensidade e entrega os atores a viveram no palco. Noites Brancas é, na origem, um romance escrito pelo grande autor russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1848. Muitos torcem o nariz para as adaptações fílmicas e teatrais de grandes obras literárias ou, para ser acadêmico as "traduções intersemióticas" entre os diversos gêneros narrativos. Agora queria falar um pouco sobre o filme (assista ao trailer) dirigido por Luchino Visconti, lançado em 1957, e que ganhou a Palma de Ouro daquele ano em Cannes. A São Petersburgo de 1848 é transportada para uma Livorno de meados do século 20 (reconstruída com requintes de realismo num estúdio da Cinnecitá) , em uma época que evoca o pós-guerra mundial. Marcelo Mastroianni é Mário (ele não tem nome no romance de Dostoiévski) um trabalhador pobre, que vive numa decadente pensão suburbana - bem ao gosto da corrente neo-realista do cinema italiano da época. O único interesse do rapaz naquela noite branca é encontrar alguém (leia-se uma prostituta) para se divertir um pouco e aplacar o tédio e a solidão. O que ele não sabe ainda é que Natalia vai aparecer dali a pouco, na figura de uma mocinha que chora copiosamente sobre uma ponte. Condoído e ao mesmo tempo interessado, Mario se se aproxima e tenta puxar conversa, saber por que aquela garota está em prantos. Ela percebe e se esquiva dele. Um acaso vem em seu favor: um bando de motoqueiros arruaceiros começam a importuná-la e Mario, dando uma de valente e de protetor de mocinhas frágeis e delicadas, os afugenta. Conversa vai e vem, encontro marcado para o dia seguinte. A longa noite passa e chega a hora de os dois se reverem: aí então a razão das lágrimas se revela: um homem misterioso estava por chegar ontem, e ele não veio. É o mesmo que tinha prometido, um ano antes, que viria para levá-la, quando conseguisse se ajeitar na vida; viria para tirá-la daquela casa em que ela vivia com a avó cega e a criada surda e literalmente presa a barra da saia da primeira, para não repetir as estripulias típicas de uma adolescente orfã de pai e mãe. A espera se torna angustiante pelo princípe encantado que não vem. Mario, sem querer (querendo) vai se apaixonando por Natalia, e ao mesmo tempo a ajuda a tentar encontrar o prometido. Quatro noites dura a angústia, quatro noites prometem a felicidade, mas tudo pode acontecer em quatro noites. Você deve conhecer uma história parecida: o rapaz ama a garota, mas não consegue dizer que a merece mais do que aquele que a deixou com a vaga promessa de um dia voltar. Mario dá conselhos e consolo, ajuda a escrever cartas, aplacando em seu coração "tão tosco e tão pobre" a paixão que sente, e não deseja tão sinceramente assim que o outro apareça para levá-la. O que ele quer mesmo é que o desconhecido nunca apareça.

Little Sister Leaving Town

Esse clipe da cantora canadense Tanita Tikaram veio parar por acaso aqui. Achei o filme estranhamente belo, extremamente simples, com uma singela historinha da moça que um dia deixa a cidadezinha onde viveu. A canção, na voz sui generis de Tanita, é belíssima e a fotografia, primorosa.


DIA DOS NAMORADOS CHEGANDO...



MENSAGEM

Torno a pensar em tudo isso que fiz antes
Por ti e por todas as coisas
A cada passo do pensamento eu te busco no passado
É remoto no meu coração o tempo vivido
Mas é do dia de hoje a notícia chegada
Leio na página do cotidiano a presença da lembrança
Que vem de manhã cedo
A trazer palavras novas sobre o nosso caso
Sinto como se agora fosse todo o destino.
Eu me lembro que dizia assim mesmo
Todas as letras com que te digo isso
São as mesmas
E eu me vejo num próximo futuro
Repetindo tudo.

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA


"Hoje de manhã assisti ao filme que peguei disciplicente na locadora; "A Felicidade não se Compra" acaba de entrar na lista dos meus melhores filmes. Eis uma sinopse: na noite de natal, George Bailey (o sempre extraordinário James Stewart) esmagado pelas dívidas e sob a ameaça de prisão, decide se suicidar. George sempre quis ajudar aos outros, sacrificando o melhor da sua vida quando se tratava de proteger aqueles a quem amava. Filho de um banqueiro benevolente, que emprestava dinheiro aos cidadãos mais miseráveis de sua pequena cidade, Bailey sempre foi admirado e respeitado pelas pessoas, muitas vezes tido como herói e benfeitor. Amado por muitas mulheres, só amava Mary (a lindíssima Dona Reed). De percalço em percalço, Bailey acha que é feliz, que se realizou em sua vida modesta e pacata na pequena firma do pai, cuidando com dificuldade dos cinco filhos e ao lado da bela esposa. As maquinações do velho Potter (Lionel Barrymore) dono quase toda a cidade, porém, levam Bailey a uma sucessão de infortúnios, fazem-no se afogar em dívidas, ameaças de prisão, bebedeiras. Na véspera do Natal, desiludido, bêbado, espancado, desencantado, amaldiçoando a vida e a Deus, Bailey decide se matar, atirando-se de uma ponte. É aí que entra em ação o engraçadíssimo "anjo de segunda classe" Clarence (Henry Travers) designado pelo próprio Deus para salvar Bailey de perder o maior bem que todos temos, a própria vida. Clarence resolve mostrar a Bailey como seria se ele não tivesse nascido, o quanto cada vida depende de cada uma das outras, como seria diferente se ele não existisse para as pessoas que o amaram apenas por ele ter existido. Como seria a vida do irmão que ele salvou de se afogar no gelo, como os pobres moradores da cidade teriam vivido se ele não tivesse abrido mão da própria felicidade para salvar o banco do pai, se não tivesse trabalhado pela felicidade dos outros. Deus ouve a oração de toda uma cidade, tantas pessoas elevam a prece ao alto que a intervenção divina vem para salvar uma vida e uma grande história."

NOITES BRANCAS

(publicado no Blog dos 110 anos de Belo Horizonte, do UAI- Estado de Minas, Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 2007)





O coração já vinha acelerado desde o Mercado Central. A rosa vermelha nas mãos, os olhos brilhando, uma vontade de ganhar asas e chegar logo. Contorno com Célio de Castro. Ela tinha combinado para as 6, 6 e meia da tarde em frente ao Champion. Noites Brancas no Teatro Alterosa, com a Débora Fallabela e o Luiz Arthur. Chego bem antes de seis. Como sei que ela só chega na hora marcada (ela não costuma atrasar), resolvo caminhar pelas redondezas. Rua Jacuí, Rua Itajubá, Praça Negrão de Lima. O outono mostra-se todo nas copas dos ipês, cujos galhos amarelos se enroscam nas sensuais volutas dos centenários edifícios neoclássicos; a pressa indiferente dos transeuntes, poucos param para ver a criança que pede com os olhos uma moeda, sabe-se lá se é realmente para comer; "olho a cidade ao redor, e nada me interessa": a canção de Ana Carolina me toca os ouvidos como a brisa serena do início da noite. E é verdade. Tudo o que me interessa é uma moça, de todas as moças da cidade, a única que eu espero chegar. Como Minas não tem mar, não é a Garota de Ipanema, mas quando ela passa, quando ela vem, também aqui "o mundo inteiro se enche de graça, e fica mais lindo". Aí de repente, como sempre repentina, como toda a surpresa, ela aparece. Na hora. Mas é cedo ainda, não precisamos ter pressa. Podemos os dois ir tranqüilos, o teatro é perto, na Assis Chateaubriand; podemos caminhar conversando sobre as nossas mais recentes novidades, trocando idéias sobre os próximos dias, correspondendo nossas expectativas sobre as coisas do mundo. E meu olhar pode sem se acanhar admirar como é linda essa moça, como ela sorri e ilumina o início da noite de Belo Horizonte. Os arcos do Viaduto Santa Tereza assomam à distância. O arvoredo do Parque Municipal, a linha do horizonte por trás dos edifícios do Centro já se mostra cor-de-fogo, o sol já vai descansar. Estamos os dois chegando ao Alterosa. Uma pequena multidão se aglomera diante da porta, todos esperam a peça começar. Débora Fallabela e Luiz Arthur se transformam na menina Nástenka e no Sonhador Sem Nome. No palco, uma história de amor. O Sonhador encontra na ponte do Nieva, em São Petersburgo, aquela que em quatro dias amará, para depois vê-la partir nos braços de um Outro Qualquer. Belo Horizonte podia ser a então capital russa do século XIX. Eu seria o sonhador e ela, a Nastenka em meu coração. Eu também viveria o meu "minuto de felicidade" e também bastaria para "preencher a minha vida". Foi o que mais tarde aconteceu. Eu disse tudo. Assim como o Sonhador, eu sonhei em voz alta e deixei que ela ouvisse o meu sonho, deixei que ela soubesse que o personagem do romance era eu. A Rua da Bahia, no La Greppia, me pareceu uma das vielas da cidade russa com suas tabernas; ela se assustou tanto com a novidade já suspeitada quanto a personagem do conto de Dostoievski; mas ela já sabia, já percebia, já sentia que eu não era só aquele rapaz estranho na vida dela, aquele que eu mostrava e o que se escondia em mim. Mas era tarde e eu morava longe. Tínhamos que ir embora. Ela para o Bairro da Graça e eu para o outro lado da cidade. Me deixou na Paraná e foi. Eu não notei a cidade já com todas as lojas fechadas, a não ser pelos bares apinhados de gente querendo beber alguma coisa para encontrar alguma felicidade perdida. E não notei também um rascunho de lágrima que se desenhava no meu rosto. Eu disse adeus e fui andando. Só. No meio da cidade, agora totalmente desconhecida. Sem as luzes que ela trazia nas mãos; apenas uma claridade pálida, uma sombra em cada esquina, agora ameaças de um perigo. Diz-se que nas noites brancas européias o sol não se põe: que uma espécie de manto nevado recobre as ruas e as casas, manto leitoso, véu diáfano. Deixa tudo com a impressão de um filme antigo, de um conto romanesco do século XIX, quando todo romantismo ainda não era demodé. Foi assim na noite de 19 de junho de 20...em Belo Horizonte. Pelo menos enquanto a aventura romântica durou, até que ela, do mesmo jeito repentino com que apareceu, dobrou uma esquina, a última antes de desaparecer dos meus olhos e ir morar em meu coração. Um minuto inteiro de felicidade.

O FANTASMA DE BELO HORIZONTE

Hoje saí para caminhar sem rumo
Tive um encontro com a cidade
Namorei todos os sorrisos das moças de vestido
Apostei todo o meu dinheiro em todos os cassinos
Fui a pé aos bairros do destino
Perdi perdão ao Deus de todas as igrejas
Esmolei junto com os mendigos
Deixei-me levar como a multidão
Fui cada um no meio de um milhão
Estive confuso e tumultuado como os carros
Comprei a vida nas diversas embalagens
Em que ela costuma vir envolvida
Vi a criança ir desalentada, o andarilho louco
que sonhava na avenida
A mulher que não tinha outra saída
A não ser se entregar
Por quase nada.

Hoje saí pela cidade, a andar pelo passado
Centenário,
Outros fizeram antes de mim esse mesmo itinerário
E nunca mais foram vistos.

DO TEMPO

Contra a clara manhã de inverno
Sonho na solidão
Que vivo de novo aqueles dias que passaram
E que ainda são
- E espero.

A NOITE NA CIDADE

Os carros são indiferentes
Há toda uma fuga de toda gente
Não se sabe para onde
As casas se acendem à noite
Contra a pálida e escura cidade
Que emudece
O trânsito cessa de repente
A pressa

A ilusão vendida a preços populares
Faz um extremo contraste com o rebanho triste
Que anda em fila

As luzes distantes são bares
Em que se vendem gotas de felicidade urgente

Numa esquina qualquer
Uma criança oferece
a infância