O trecho novo está em
itálico
- Bom dia. Por favor. Eu queria falar com a Rafaela.
- Um minutinho, senhor. Vou ver se ela está. Rafeeeelaa! Cliente!
(...)
- Oi, Rafaela. Você não ligou. Chegou meu Neruda?
- Pedro!!! err...Senhor Pedro.(Belo sorriso)- Chegou sim! Vou lá dentro pegar pro senhor.
Rafaela. A atendente. Bonita. Pele clara, muito branca, que não vê sol; óculos de aros grossos. É a atendente da livraria mais babalada da cidade, aonde os belohorizontinos "cultos" vão pra se exibir, mostrar como são cultos e que já leram todos aqueles livros. Mas esse pessoal vai lá mesmo é para beber no bar anexo à loja, jogar conversa fora e fazer "farol", como um amigo dizia. Pedro veio buscar o livro que lhe havia sido prometido uma semana antes. Ele é o que podia ser definido como "rato de biblioteca" e "CDF". Os colegas da escola sempre zoavam dele, o chamando de "quatro olhos", por causa das grossas lentes que precisou usar desde criança; lia tudo o que caía nas suas mãos. Mas nem sempre podia entrar nas livrarias da cidade, os livros já estavam muito caros naquele tempo. Pedro considerava aqueles lugares onde se vendiam livros como templos sagrados aonde ele jamais poderia entrar, e os vendedores lhe pareciam monges que protegiam um tesouro precioso. Agora, já trabalhando (trocou o óculos fundo-de-garrafa por lentes de contato) e com uma condição melhor, emprego no Estado, pode se dar ao luxo de frequentar livrarias chiques da zona sul; gasta boa parte do salário de funcionário público que mora sozinho numa quitinete no Centro com os seus Nerudas, Pessoas e Voltaires. A estante nova, comprada à poucas semanas, já quase não suporta o peso de tanta cultura. Pedro está só. A última namorada que ele teve foi a mais ou menos... bem, não foi assim uma "namorada", se é que podemos chamar de "relacionamento" uma ou duas idas ao cinema (Almodóvar e Woody Allen) e uma ou duas idas ao Café Três Corações da Savassi. Ao que consta, a moça está em alguma cidade do interior de Minas, voltou a morar com os pais. Agora, Pedro sai do trabalho e vai à livraria pelo menos duas vezes na semana, e sempre ali está a atendente de óculos de aros grossos.
Se alguém já desconfia que o interesse de Pedro pelos livros é um pretexto para vê-la, já podemos começar a revelar os detalhes. Então: voltaremos uns dias atrás nessa história, no dia em que Pedro veio procurar aquela edição cara do Neruda, que acabara de ser lançada. Uma edição bilíngue de "Navegações e Regressos" ainda inédita no Brasil. Era dia do pagamento, quando ele se permitia algumas pequenas extravagâncias, mas aquele Neruda era um livro já acalentado a muito tempo, desde que ele ouvira falar que, finalmente, o inédito do poeta chileno chegaria ao Brasil. Pedro já havia reparado na nova balconista das outras vezes. O rapaz de antes, com quem ele havia comprado todos os outros livros, não trabalhava mais lá. Naquele dia, Pedro entrou na loja e foi direto à prateleira dos autores latino americanos, na letra N de Neruda, mas não encontrou a edição esperada. Olha para cima, e vê a garota subindo numa escada, repara em seu belo corpo, e envergonhado, baixa os olhos, olha para o outro lado. A moça nota o cliente. É tão tímida quanto ele e ruboriza ao se sentir observada, mas o ar profissional, a forçada gentileza dos atendentes, o "pois não, senhor, o que deseja?" faz com que ela se recomponha.
-Eu quero aquele Neruda que saiu semana passada, ainda tem?
-Desculpe, senhor; vendemos todos...
-Puxa, que pena. Eu queria muito...
-Posso ver se consigo no distribuidor, senhor. Leva uma semana, mais ou menos...
- É mesmo? E se eu não sobreviver até lá? (ele ri, forçando uma naturalidade que não tem).
(Ela retribui o riso, mas volta ao tom formal): Se o senhor quiser, posso fazer o pedido e ligar assim que chegar.
(tira uma caneta e um bloquinho do bolso do avental) Vou anotar o seu telefone. Prometo que ligo na mesma hora que chegar.
- Pedro. Prefiro por email, pode ser?
- Pode também.
- Então anota aí: pedromarinho@gmail.com.
- Vou fazer o pedido para a distribuidora amanhã de manhã, senhor Pedro.
- Entao tá. Eu espero. Até mais.
- A livraria (...) agradece a sua visita, senhor. Tenha uma boa noite.
- Boa noite.
Eis o primeiro diálogo. Pedro vai para casa frustrado por não ter conseguido o seu Neruda, mas algo lhe diz que esta não é a única causa da sua noite mal dormida. Alguma coisa naquela atendente havia despertado sua curiosidade. Ele ainda não se dera conta de que, como nos filmes, já tinha se apaixonado pela atendente da livraria. Pensa: "volto lá amanhã mesmo, é sábado, vou ver se compro aquele Borges também".
Já de manhã, Pedro acorda com o firme próposito de ir à livraria e convidar a moça de óculos de aros grossos para tomar um café e conversar sobre literatura latino americana. Para ir até a loja, só precisa caminhar alguns quarteirões.
Qual não é a sua decepção quando chega e, em vez da atendente bonita, encontra um simpático velhinho vestindo o mesmo avental verde e com o mesmo sorriso ensaiado de "pois não senhor, o que deseja?"
-Não, nada não. Só estou olhando.
- Fique à vontade, senhor. Qualquer coisa, é só chamar.
Pedro não está nada feliz de não ver a sua balconista predileta. Mas disfarça e fica perambulando a esmo pelas estantes entre os best-sellers da semana e os manuais de auto-ajuda, entre os romances água-com-açúcar e os livros didáticos, entre os livros-que-viraram-filmes e os filmes-que-viraram-livros, entre as séries sobre vampiros e os clones de Senhor dos Anéis e...Aqui e ali, pega alguma coisa, folheia, devolve para a estante. Tudo para passar o tempo, quem sabe a moça está lá dentro no estoque, quem sabe saiu para tomar um café e vai voltar logo. Não aparece! Será que ela não veio trabalhar hoje? Ou será que ela é fruto da sua imaginação, será que saiu de um daqueles livros, será que ela só se materializa quando ele está ali? Não, se fosse assim, ela estaria aqui... sem poder esperar mais, Pedro vai falar com o velhinho de avental verde:
- Escuta... Ontem eu pedi àquela moça um Neruda que chegou semana passada e ela disse que vai pedir pro distribuidor. O senhor sabe se ela pediu?
- Qual delas?
- A de óculos.
- Ah, sim. A Rafaela. Hoje é dia de folga dela.
- Mas ela me disse que ia fazer o pedido pro distribuidor hoje.
- Vai ver que ela esqueceu que não trabalha hoje. Segunda feira ela taí de novo. Ótima funcionária. Estuda Letras na Federal. Sabe tudo de literatura latino americana. Gosta de Neruda também. Que nem o senhor, não é?
- É. É o meu preferido.
(Só agora Pedro percebe que está falando com o proprietário).
- Será que o senhor poderia fazer o favor que lembrar a ela que eu fiz o pedido? Meu nome é Pedro, Pedro Marinho. Deixei meu email com ela.
- Eu mesmo posso fazer o pedido, senhor. Deixa eu abrir aqui no computador. Bom, vamos ver... "Pedidos"... "Pedido Novo"... "Título ou autor"... qual é mesmo o título, senhor?
-"Navegações e Regressos". Neruda.
- "Na-ve-ga-ções e... uai, já tá pedido! A Rafaela pediu ontem mesmo, um pouquinho antes da loja fechar. Boa funcionária, não disse? Tava meio avoada ontem á noite, mas deve ser a dissertação, coitada, e aquela história da separação dos pais... vou ver se dou uns dias de férias pra ela.
- O senhor disse que ela fez o pedido ontem...então que dia que chega?
- Bom, hoje é sábado. Não conta. Amanhã a gente não abre... Então, a partir de segunda...uma semana. Só na outra segunda. Mas posso garatir que o Neruda já é do senhor. E só precisa pagar quando receber. Se for à vista, damos desconto.
- Muito obrigado. Pede pra...
- Rafaela.
- ... Rafaela me ligar. Anota o telefone, por favor. Eu falei meu e-mail mas, pensando melhor, pede pra ela ligar.
(O velho sorri. Parece que entendeu): - pode deixar.