sábado, 14 de junho de 2025

11 minutos

11 MINUTOS.

 

O painel eletrônico avisa: daqui a 11 minutos, o ônibus vai chegar. O novo sistema foi implantado pela companhia que gerencia os ônibus da cidade a pouco mais de um ano. No começo, muita gente desconfiou, achando que era mais uma  "enganação do governo", que não dava pra prever ou adivinhar quando o "busão" no trânsito "caótico" da metrópole chegaria ao ponto. Mas, como tudo na vida, o povo se acostumou, aprendeu como funciona e passou até a gostar. Então, agora a noite deve estar faltando MESMO onze minutos pro ônibus chegar e levá-la pra casa. 11 minutos. Agora nem isso, porque caiu pra 9. Tenho pouco tempo para admirá-la, para ouvir o resto da história, para me acostumar com a ideia de que esta noite de sábado está definitivamente terminada. De tarde, falávamos de todas as coisas, ríamos das coisas tolas que nos dizíamos no passado, contávamos o que tinha acontecido em nossas vidas depois daqueles anos todos, que aventuras e desventuras vivemos depois de nós. Parecia que o tempo não ia passar esta tarde, porque faltava muito para o ônibus chegar, nenhum painel eletrônico exibia a contagem regressiva para a despedida. Seis minutos. Você termina o caso do dia da viagem. Silencia. Me olha. Parece cansada. A história da tal viagem é mesmo cansativa, deve doer pra você contá-la e recontá-la. Por isso, seu silêncio agora é bom, deve ser reconfortante pra você não ter que repetir as mesmas palavras que eu já conheço tão bem. Você olha a esquina, parece que deseja que o ônibus chegue antes dos quatro minutos previstos. Deseja que o veículo seja um disco voador que a leve pra outro planeta longe daqui, desta cidade que você não deseja mais. Se eu pudesse, eu pegaria qualquer condução contigo, iria pra onde você vai, te deixaria na esquina de casa e voltaria caminhando. Mas o painel acaba de informar "aproximando". É verdade. Lá da outra esquina, vem vindo apressado o coletivo. Muitas pessoas estão indo pra casa a essa hora. Elas estão chegando dos seus dias que devem ter sido tão legais como o meu; devem estar voltando do cinema, do clube, do parque; muitas estão satisfeitas e descansadas depois de um dia inteiro no trabalho, depois de visitar os entes queridos internados num hospital; muitos trazem em suas felizes sacolas aquele objeto tão desejado, o celular novo, as roupas de marca, os alimentos, o livro novo. Estou feliz por toda gente que está indo para casa agora, exceto por você: eu não queria ver partindo. Queria que você ficasse, que esperasse o próximo (o painel anuncia que chegará em vinte e cinco minutos) e terminasse a história da prova: se Deus quiser, você vai passar no concurso da Prefeitura, daí "as coisas devem melhorar". Mas agora não dá tempo mais. A porta do ônibus já abriu, muita gente se acotovela pra entrar. Estranho estar cheio a essa hora. Você me dá o último abraço do dia, agradece de novo o presente, diz que vai "devorar o livro" hoje mesmo. Embarca. De lá de dentro, antes de girar a catraca, acena e sorri. Eu retribuo o sorriso, aceno também. Mas tudo isso é muito rápido, porque logo o ônibus se afasta, já está lá no viaduto Santa Tereza. Vou esperar o meu. Opa, está "aproximando" também.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Charlie Brown

Volta e meia eu vou postar aqui uma tirinha do meu personagem preferido dos quadrinhos: Charlie Brown, de Charles M. Schulz (1922-2000). Apesar do devastador baixo-astral que costuma afligir a alma torturada do personagem, Charlie Brown, o cabisbaixo, o tristonho, o rejeitado-mor, o coitadinho do "blockhead" (cabeça-dura) é da uma humanidade e de uma sinceridade assustadoras. Mesmo que ele seja uma negação em todo tipo de esporte, que ele não consiga sequer empinar uma pipa ou chutar a bola de beisebol (até porque a carrasca da Lucy não deixa), de ser um fracasso em termos afetivos - sua paixão pela "garotinha ruiva" jamais irá se consumar - e de ser o pior técnico do mundo, é impossível não se identificar com suas inquietações, suas perguntas sem respostas, seus dramas; Charlie Brown representa em cada um de nós a neurose do mundo cotidiano, nossos dilemas morais estão todos aqui. Trata-se mesmo de uma catarse coletiva; o amor não correspondido, a nota baixa na prova final, as derrotas seguidas no jogo de futebol, o momento crucial que vai por água abaixo por causa de uma palavra atrapalhada, o pânico que destrói a primeira e única oportunidade; Charlie Brown é a representação do nosso conflito existencial e é também a imagem das frustrações e desapontamentos pelos quais todos passamos na aventura de crescer. Mas nem tudo nessa história é depressivo ou patético. Os momentos mais divertidos e nonsense são garantidos pela presença do cão Snoopy, o beagle "quase humano" de Charlie Brown. Snoopy, também conhecido por aqui como "Xereta", é o anti-herói mais simpático do mundo dos Comics norte-americanos e, apesar ser às vezes presunçoso e arrogante.

sábado, 9 de julho de 2022

 O MENINO ESTÁ DE VOLTA

Sejam ben vindos


O INGRESSO NÚMERO UM


LEGIÃO URBANA 

PARQUE DAS MANGABEIRAS, BELO HORIZONTE, (25/06/1994)

Será eterna e inesquecível esta noite - que começou negra, tensa e chuvosa. Eu estou entre milhares de pessoas, nervosas, mas felizes - afinal estão aqui, neste belíssimo parque, para ver subir ao palco, depois de quatro anos, a maior e melhor banda de rock do Brasil - A Legião Urbana. A multidão grita, canta, implora. De repente, as luzes do palco se apagam, e pelos alto-falantes começa a ser ouvida uma bela melodia. Quando a banda entra finalmente no palco, o parque vem abaixo: muitas lágrimas, muitos gitos, a explosão da alegria contida a tanto tempo - nossos ídolos estão aqui! Renato Russo, nos vocais, Dado Villa-Lobos e Fred Nascimento, nas guitarras; Mareclo Bonfá, na bateria, Carlos Trilha, nos teclados e Gianfranco de Luca, no contrabaixo, arrasam de imediato com "Mais do Mesmo", levando o público ao delírio: Milhares de vozes com a mesma canção. 

O mais impressionante é, sem dúvida, a performance do vocalista Renato Russo - não importa que o guitarrista Dado Villa Lobos, com seus solos perfeitos e precisos, roube a cena por alguns instantes - o centro das atenções é mesmo a figura franzina, de barba e óculos, vestida com uma camisa branca de detallhes floridos. Renato É a Legião. Durante o show ele fala e canta muito. E faz mais: dançam brinca com o público, reclama do som; "Tem muito grave no palco!, esbraveja com a produção. Confessa que esqueceu um trecho de canção "Eduardo e Mônica" e pede, em tom de brincadeira, para o público ajudá-lo. Canta "Será" sentado à beira do palco, usa o microfone como um punhal, e o crava no peito no final de "Ainda é Cedo", que é introduzida com um monólogo improvisado, em que ele diz "eu tive uma menina que estraçalhou meu coração, eu tive que catar os pedaços no chão, depois disso é que virei bicha"mas depois diz que é brincadeira, e pede às meninas que cuidem muito bem dos seus rapazes, para eles não passarem para o outro lado. 

A noite foi cenário de um quase milagre: o frio, a neblina, desaparecem como que por encanto, e uma lua magnífica veio olhar porque tantas pessoas cantavam e ficou para ouvir. 

Deve ter gostado: "Vento no Litoral", "Metal Contra as Nuvens", "Os Anjos", "Tempo Perdido", "Giz", "Indios", as já citadas "Será", "Eduardo e Mônica"e "Mais do Mesmo", e ainda "Os Barcos", "Ainda é Cedo", "Quase sem Querer", "Que País é Este", " Eu Sei", "Há Tempos", "Pais e Filhos", "(1965) Duas Tribos", "O Teatro dos Vampiros", "La Nouva Gioventú", "A Fonte", "29", "Perfeição", "Do Espírito", foram as músicas de cerca de uma hora e meia de show. 

O final foi ainda mais lindo: todos os integrantes da banda jogaram flores para o público, que foram disputadas à tapa. Eu mesmo consegui uma, mas tive que dá-la a uma garota.As pessoas, de alma lavada, exaustas e felizes, começam a se retirar ao som de um belo solo de violão, gravado em fita. Os comentários são variados: "O show foi ótimo", "Renato Russo é lindo", diz uma garota. "e o Dado também, diz outra. "É pena que eles não tocaram "Faroeste Caboclo"(uma das músicas mais pedidas pelo público). Espero que eles voltem em breve, e mais de uma vez - valeu ter vivido até aqui, para viver esta noite maravilhosa. 

Olavo Duarte, 25 e 26 de junho de 1994

1 - Em tempo: Renato disse pelo menos uma bela frase, entre outras. Ao reclamar do som, saiu-se com esta: "Eu sempre reclamo de tudo, porque sempre tenho resposta para tudo...mas eu não tenho resposta para nada!".

2 - O último parágrafo do texto acima enterra um desejo que, desde a madrugada de 11 de outubro de 1996, jamais poderá se realizar: o cantor e compositor Renato Russo morreu nesta data, aos 36 anos em decorrrência de complicações provocadas pela AIDS.



quinta-feira, 21 de abril de 2022

    Este blog está suspenso por tempo indeterminado.

domingo, 9 de outubro de 2016

Minha psicóloga sugeriu que eu retomassse esse blog para tentar distrar das minhas crises de ansiedade e da depressão. Já temtei de todas as formas - mas não sei se tentei direito - algo para me relaxar, para dimuinuir a tristeza e a depressãao. Estou me sentindo mal, dormindo a custa de remédios (às vezes nem eles dão conta do recado). Tambem não sei se falar isso só pra mim mesmo (ninguém conhece esse blog), pode fazer alguma diferença. È pessimista (eu sei ) esse pensammento. Estou profundamente trista, ansioso e preocupado com o futuro. Estou afastado do trabalho - na verdade quase todo mundo está - e isso me deixa mais sem perspectiva ainda, com a cabeça cheia de pensamentos ruiins, lembranças tristes e trraumas do passado, frustrações e rejeições.Não sei pra quê eu estou fazrndo isso, escrevendo coisas tão deprimentes a meu respeito, eu que pensava ser resiliente e forte. Não sou. Ou nunca fui. Na verdadde, algo (não sei o que é ainda) explodiu um dia e me trouxe ao estado em que estou - tomando remédios e indo a terapias.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

SAUDADE DE DIZER ADEUS

Talvez você não se importe com isso, mas a verdade é que hoje, mais do que nos últimos dias, estou sentindo a sua falta. Poderia dizer que nada houve, que não tivemos nada, que tudo não passou de coisas da minha imaginação. Eu não diria isso: o que aconteceu comigo foi amor. Mesmo que você não o tenha sentido, ainda que por causa da sua indiferença e falta de consideração isso não tenha passado pela sua cabeça nem pelo seu coração. Você não tem culpa disso, por que antes de eu aparecer você não existia, antes de eu te inventar, de criar um personagem para você representar, você não estava lá, eu nunca antes tinha visto você. Portanto, eu te absolvo do pecado de não me querer. Afinal, já existia uma história antes, você já era personagem de outra criação, sua história existia antes de eu criar a minha história com você. Eu não tinha mesmo o direito de me intrometer nos seus assuntos, de fazer tudo para você se sentir bem, de me dedicar a seus pequenos problemas cotidianos, de pedir um sorriso no seu rosto quando eu percebia a sua tristeza, cujos motivos eu não sabia. Desconhecida, estranha e às vezes arredia ao meu afeto: compreendo agora que isso realmente não cabia a mim resolver, porque você não me havia convidado a entrar no seu mundo, eu era um invasor do seu castelo, e ainda que eu quisesse vir em missão de paz, não deixava de ser um invasor. Você parecia ter medo, seu orgulho não deixava dúvidas de que eu estava indo longe demais por você, não te deixando ir enfrentar você mesma, antecipando seus desejos, até mesmo criando desejos para você. Agora que você foi embora, mas deixando-se ficar em coisas suas em mim, eu não tiro a sua razão em querer ter ido, porque, como você mesma disse, meu excesso de afeto estava te sufocando. É claro, não é bom se sentir sufocado, não se consegue respirar, não é possível se sentir livre com alguém te protegendo, cuidando de ti como se você fosse uma criança desprotegida e assustada. Você tornou-se independente de mim no dia em que me rejeitou, você curou-se de uma enfermidade com a qual você não se contaminou, livrou-se com antecedência de sofrer por antecipação. Foi bom que tenha sido assim, melhor dizer que foi a melhor coisa que aconteceu: antes de tudo ruir, nós desmontamos; quando você partiu eu já tinha partido, já estava me despedindo, arrumando as minhas coisas para carregá-las comigo, prevendo já o fim, me desfazendo daquilo que eu não ia precisar ou daquilo que não conseguiria levar comigo; até porque seria remoer o remoído guardar os restos, sem préstimo, não caberiam no armário do amor as mágoas, o peso de tudo faria tudo desabar de repente. Quando deixei algo para trás, saí mais leve, andei mais depressa para não ter tempo de voltar atrás; talvez eu tenha esquecido de alguma coisa importante, e é provável que tenha abandonado o que jamais deveria ter sido esquecido. Mas agora não é mais possível recuperar isso. E esta falta que eu estou sentindo hoje é da configuração das coisas daquele tempo, da maneira de pensar, sentir, querer e sonhar daquele instante.

sábado, 15 de setembro de 2012

PLATAFORMA J



- Nossa! Não vi o tempo passar! Já são dez e meia! O ônibus parte em meia hora!
- Dá tempo...a gente pode ir a pé, se você quiser.
- Sei não, acho melhor eu pegar um táxi. Não precisa ir comigo até lá, não...
- Mas eu queria ficar um pouco mais com você.
- É... mas será a última vez.
- Eu vou guardar essa noite pelo resto da minha vida. Lembra de "Noites Brancas", aquela história do Sonhador falando do "minuto de felicidade"? Pois é. Acho que esse é o meu minuto. O último.
- Eu também não vou te esquecer, meu caro. Mas está na hora de ir. Vamos?
- Só se for a pé.
- Temos vinte minutos.
- Se a gente descer aqui a João Pinheiro, é rapidinho. Daí a gente pega a Afonso Pena, chegamos na Rodoviária com uns quinze minutos. Dá tempo de eu te dar um abraço de despedida.
-Então vamos logo.

Os dois se olham. Sabem que esta é a última vez que vão se ver, depois que ela passou no concurso da Prefeitura de Montes Claros. Com a vantagem de morar perto da casa do pai, perto do serviço, no Centro, recebendo um salário até razoável em comparação com a merreca que ela ganha na C&A. Mas o mais importante é que lá ela vai morar com o ex-namorado, agora também funcionário da administração municipal. Os dois terão uma vida bem melhor que esta aqui em Belo Horizonte. Claro que ela optou pelo certo no lugar do duvidoso, que no caso é viver com esse famoso poeta desconhecido e nunca publicado, mais sobrevivente do que qualquer outra coisa. Perfeito Zé Ninguém, pé rapado, tem que pedir licença pra cair morto. Ela está certa em querer uma vida sem atropelos, sabendo que, no fim do mês, vai ter dinheiro pra pagar o aluguel, o gás.

Os dois seguem pela João Pinheiro. Estão andando até devagar para o pouco tempo que tem pra chegar ao destino. Ele, de cabeça baixa, mãos nos bolsos, o cigarro apagado no canto da boca. Ela, disfarçando uma lágrima, finge que não está triste e assustada por deixar aqui este homem, um cara até legal, que a ama de verdade e a faz sentir mulher; mas “amor não enche barriga nem paga as contas” diria a sua sábia mãe, se ainda estivesse por aqui.

Estão na Álvares Cabral. Mais uma à esquerda e já ganharão a Afonso Pena, a última linha reta em direção ao último lugar em que vão se ver. A Rodoviária de Belo Horizonte é um desses lugares de encontros e despedidas, tipo aquela canção do Milton que diz assim “Todos os dias é um vai-e-vem /A vida se repete na estação /Tem gente que chega pra ficar /Tem gente que vai /Pra nunca mais...” Pessoas que foram afastadas pelo tempo e pelas escolhas que fizeram na vida, pessoas que se arrependeram das escolhas que fizeram e querem voltar atrás no tempo, pessoas pedindo desculpas por ter que partir ou por ter partido, alegres ou tristes por voltar, fugindo do calor daqui para o calor do litoral, pessoas, pessoas, pessoas, todas elas deslocadas do seu habitat natural. Na Rodoviária, ônibus que chegam e saem levam e trazem consigo sonhos e expectativas, olhos brilhantes ou chorosos, ansiedades e alívios; gente que chega pra ficar uns dias, gente que vai ficar por toda a vida, gente que não agüenta mais de saudade da terra natal, gente que não agüenta mais viver na capital.
No caso dos nossos dois amigos, um deles vai partir para uma vida nova; o outro deve ficar para viver a mesma vida, ou a metade da vida que vivia até agora. Ela não suporta mais viver assim sem garantia, sem perspectiva, ao lado de um homem que a ama, mas que não tem certeza se almoçará amanhã; se ela partir, seguindo a razão e deixando o coração por aqui, talvez seja melhor para ela. Porque não dá mais pra ficar mudando de casa toda vez que vence o contrato e o aluguel aumenta. Toda vez juntar as tralhas e ir procurar outra freguesia. Agora ela vai ter uma casa, um emprego decente, um salário, quem sabe até poderá retomar os estudos e se formar. Já ele não se formou; chegou a começar o curso de jornalismo na Federal, abandonando-o no terceiro período. Os colegas com quem ele dividia o apartamento tinham se formado e a república ficara grande demais para ele sozinho, maior ainda para o seu bolso. Ela um dia passou na imobiliária pra pegar as chaves do apartamento do anúncio do Balcão, de um quarto, perto do Centro, barato, que dava pra ela e as duas amigas do serviço. Qual não foi a surpresa de abrir a porta da sala e se deparar com um estranho dormindo num colchonete, seminu, com uma garrafa de conhaque pelo meio. Não adiantou ele inventar que era o pintor contratado pela imobiliária: no fim ele teve que confessar que, sem ter pra onde ir, fizera cópias das chaves e estava há uma semana “morando” ali escondido. Mil desculpas depois, depois do susto e do constrangimento, ela até que achou graça da situação e prometeu não contar nada para o pessoal da imobiliária se ele não demorasse a arranjar outro lugar pra ficar. Ele poderia passar a noite ali, se quisesse. Ela até perguntou se ele estava com fome. Pra falar a verdade, a moça achou o sujeito bonito, ainda mais quase nu como estava. “Tudo bem, vou embora”, disse ela. “Volto aqui amanhã, vou ficar com o apartamento. Quero ver você fora daqui, viu?”, disse ela de um jeito jocoso. Ele:“tá bom, tá bom. Mas eu só saio se você tomar um café comigo amanhã”, disse ele, nem acreditando na própria ousadia, tímido como era. “Veremos”, disse ela, rindo. Quando ela contou pras amigas, elas falaram “Sua doida!Podia ser um tarado, um ladrão, sei lá! Porque você não chamou a polícia, o síndico? Ah, já sei! Você já foi logo se engraçando pra cima do cara, né, sua sem-vergonha?”
Foi assim que os dois se conheceram naquela tarde de sexta-feira, dois anos atrás. De lá até hoje, passou o primeiro encontro no teatro (foram ver Noites Brancas no Alterosa); passaram meses entre a primeira briga e algumas semanas de separação até a tórrida noite de amor na mesma sala sem móveis, passou a viagem a MOC para o enterro da Dona Conceição, passaram as aulas do cursinho preparatório noturno dela e um ou outro trabalho esporádico de tradução (russo e francês) para ele. Passaram dois anos, dois anos exatos até hoje, agora, noite de um dia quente de setembro, Praça Sete, poucas quadras distante da Rodoviária, destino final de uma história de amor que vai acabar em quinze minutos, a tempo de ela pegar um ônibus.
Quem rompe o pesado silêncio é ela:

- Pedro, você vai me ligar?
- Se o seu marido não ficar com ciúme...
- Ele não é meu marido. Ainda.
- Vocês vão morar juntos, não vão? Então, pra todos os efeitos, ele JÁ É seu marido...
- Vai ficar com ciúme nada, preocupa não. Só quero ter notícia daquela história da editora.
- Te mando o convite do lançamento. Traz o seu neto. Talvez seja um livro infantil. (Ele ri. Ela ri. Mas ambos não conseguem esconder a tristeza).
- Não demore tanto assim a me ligar. Quero saber que você vai ficar bem.
- Ta. Mas acho que nunca mais vou ficar bem.
- Chegamos viu? Deu tempo. O ônibus ainda não saiu.

Senhores passageiros. O Terminal Rodoviário informa: por problemas operacionais, a partida para Montes Claros programada para as vinte e três horas sofrerá atraso. Solicitamos aos passageiros que aguardem. Lamentamos os transtornos.

Ele olha para ela. Ela olha para ele. Nenhum dos dois consegue segurar o riso, que vira uma gargalhada de doidos. Quem passa não entende porque os dois estão rindo como bobos.
- Viu? O tempo está a meu favor! Ganhei mais uns minutinhos. Quem sabe até a noite inteira...vamos voltar pra casa? A gente volta amanhã cedo.
- Pára, sô. Deixa de brincadeira ....
- Desculpa. Eu só queria que o tempo parasse agora. Ou deixasse de existir. Ou que abrisse um buraco no chão pra eu entrar nele. Já sei, vou me esconder no maleiro do ônibus. Sou mestre nisso, lembra? Ninguém me descobriu até você abrir a porta da sala aquela vez...
- É, Pedro. Mas agora não estou chegando. Estou partindo. Eu é que vou me esconder. E eu acho que você não vai me achar. Eu sinto muito.

Sentam-se. Ele, instintivamente, como de hábito, segura a mão dela. Ela não o repele, ao contrário, acolhe aquele gesto afetuoso e habitual. Mas sabe que o afeto dele por ela ficará aqui em Belo Horizonte. Ela sabe que antes de o ônibus ganhar a 381 ela vai estar chorando, protegida da curiosidade dos outros passageiros pela escuridão do interior do veículo. Ele agora acaricia de leve o rosto dela.

- Promete que não vai me esquecer?
- Prometo.
- Promete que vai me escrever de vez em quando?
- Prometo.
- Promete...
- Aí já estou fazendo promessas demais.

Senhores passageiros. O Terminal Rodoviário informa: a partida para Montes Claros será realizada às vinte e três horas e vinte e cinco minutos. Embarque na plataforma J. Tenham todos uma boa viagem. Agradecemos pela compreensão.

- É...parece que é agora.
- Pois é...
- Adeus?
- Adeus.
- Você tem um minuto pra desistir dessa bobagem, Camila.
- Não, não é bobagem.
- Tudo bem. Tudo bem nada! Não quero ver isso. Vou embora antes de te ver indo.
- Tenho que entrar. Me dá um abraço.

Abraçam-se. Teria durado toda a eternidade esse abraço, é a impressão que tiveram. E pelos segundos em esse abraçou de fato durou, passou por eles tudo o que havia acontecido desde dois anos atrás; agora, aqui, tudo isso ficaria para sempre selado entre os dois, um pacto silencioso de que nenhum dos dois esqueceria daquilo tudo. O primeiro que rompesse o acordo morreria fulminado por um raio.
No meio do abraço, uma voz embargada de homem diz: “Eu te amo”. E outra voz, de mulher, responde: “Eu te amo, também”
A porta do ônibus está aberta. Só falta ela pra embarcar. Ela sobe os dois degraus, lágrimas nos olhos, tenta desesperadamente não olhar para trás. A porta do ônibus se fecha. E ele, na plataforma, a observa se ajeitar no assento perto da janela. Um último aceno, um último e inútil esforço de ambos para conter as lágrimas. O ronco do motor, a manobra suave do grandalhão de aço para se afastar da plataforma; em pouco, o ônibus já alcança a Contorno e, quando vira a primeira esquina, já não pode mais ser visto por quem chora na plataforma.Uma moça que viu a cena contou depois: “tinha uma homem chorando lá na plataforma da Rodoviária, mãe. Parece que a mulher dele foi embora. Foi tão bonito, senhora precisava ver, mãe”.



DO NADA



Chegaste com uma mochila nas costas:
Trazendo dentro dela a vida
A mãe em segredo colocou uma oração
O pai um cartão de visita
Chegaste com muitas coisas guardadas no coração
Deixadas no lugar em que você cresceu
Dentro das malas não coube o que ficou
Vieste de mãos vazias
Sem lugar pra ficar na cidade
Sem ninguém pra chorar junto contigo
Os amigos tentaram te dissuadir
Mas você quis
Você quis partir sozinha.