domingo, 31 de agosto de 2008

COMO COMPORTAR-SE NO BONDE




Machado de Assis é sempre atual e atemporal. Esse "Como comportar-se no bonde" poderia ser aplicado a qualquer meio de transporte coletivo existente. Certas pessoas não tem a noção de espaço público que é o ônibus, o metrô, o avião...fazem desses ambientes uma extensão de suas vidas privadas. Portanto, a alguns parece natural e aceitável comportar-se dentro do veículo como se estivessem em casa. Até que chegue a hora de desembarcar, somos obrigados a conviver com o sujeito que se senta no banco ao lado como se estivesse numa espreguiçadeira na varanda de casa; temos que ouvir as comadres contando causos, colocando as fofocas em dia; temos que aturar a turma do colégio, a torcida comemorando o dois a zero do time. E se o cidadão está de mau humor, então? Ele acha que o mundo é culpado...o mundo, não: o motorista, o "trocador" e os demais passageiros...Um ônibus, naturalmente desconfortável, normalmente lento, obrigatoriamente confinado, deve exigir um pouco mais de tolerância de seus usuários, mais noção de ridículo e de bons modos do que em qualquer outro lugar. Não só para ceder o seu lugar para a senhora que acabou de embarcar, ou se oferecer para segurar os pacotes da senhorita que viaja de pé, mas para demonstrar civilidade e boa educação. O transporte coletivo, a opção mais democrática de se deslocar nas grandes cidades, não pode, como diz Machado "ser deixado ao puro capricho dos passageiros".

Machado de Assis (1839-1908)
"Como comportar-se no bonde"
(1883)


Ocorreu -me compor uma certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático! exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Art. I - Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.

Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: -ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.

Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

Art. II - Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se.de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

Art. III - Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

Art. IV - Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer.

Art. V - Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, .pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI - Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

Art. VII - Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância; quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII - Das pessoas com morrinha

As pessoas com morrinha podem participar do bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-lo mesmo da janela

Art. IX - Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas como porque é uma grande má-criação.

4 de julho de 1883

sábado, 23 de agosto de 2008

CARTA AO AMIGO JOÃO*

Meu caro amigo João. Agora que seus olhos são de outra pessoa, não sei dizer se talvez eles olhem o mundo como você olhava até quarta-feira passada. Não vou julgar o seu ato desesperado de fechar de vez os olhos ao mundo, aquele mundo transtornado em que você viveu até quarta-feira. Aquele mundo que te olhava com desprezo, aqueles olhos verdes que não lhe devolviam o olhar terno e apaixonado com que você a olhava. Lembro-me bem como você parecia sereno naquele dia. Não vi - não olhei direito - que alguma coisa estranha estava por acontecer: você soube muito bem esconder a aflição que sentia. Quando te vi pela última vez, meu caro amigo, você sorriu, mas não aquele sorriso de quem está de bem com a vida, aquele sorriso que mostra os dentes -escovados com cuidado minutos antes do acontecido - mas um sorriso quase conformado, um sorriso de quem se despede sem saber se volta, sem ter certeza se quer mesmo ir. Um sorriso triste. Não vou julgar -já te disse isso - a sua motivação, não tenho o direito de questionar os seus sentimentos, condená-lo por seu ato extremo mais do que os outros já te condenaram, mais do que aqueles que o julgaram sem conhecê-lo direito, sem conhecer suas motivações, sem respeitar os seus sentimentos. Não sou juiz, nem advogado, nem especialista em matéria das motivações humanas. Eu sou seu amigo e - apesar de não entender o seu propósito de ir embora assim tão de repente e de deixar os mais próximos um tanto quanto aturdidos e perplexos - posso apenas agora desejar que, seja para onde você tenha ido, que a vida (se existir vida nesse lugar para onde você foi)seja melhor que a deste mundo. Que lá não existam olhares de reprovação e de condenação, que não existam olhos verdes e peles claras para te atormentar e humilhar, que lá você encontre a paz. Vá com Deus.

* O ex-estudante universitário João Luciano Ferreira Jr, 39, paraplégico em razão de um acidente, invadiu na quarta-feira passada (20/08) uma sala de aula da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, na região da Pampulha, em Belo Horizonte e manteve a professora Polyana Arantes, 25, sob a mira de um revólver calibre 32. Após exigir a saída dos alunos, João, que era apaixonado por Polyana, deu dois tiros contra a professora, sem acertar. Logo depois, ele atirou em si mesmo. João morreu dois dias depois em um hospital da cidade. A família autorizou a doação das córneas do rapaz.

VENDEDORES

Você precisa de quê hoje? Dê uma olhada nos seus sapatos. Você não acha que está na hora de trocá-los? Sabe aquele livro que você quer ler faz muito tempo e não está encontrando em lugar nenhum? A sua namorada faz aniversário hoje e você está pensando em comprar um belo buquê de rosas para ela? Seja qual for a sua situação, toda vez que você tem que ir a uma loja comprar algo de que você precisa, algo que você deseja, a primeira pessoa com quem você precisa conversar é com o vendedor. Muitos consideram esse profissional como um mal necessário para a vida moderna: muita gente acha que o vendedor é um mero serviçal, que não entende e não ama a sua profissão, talvez por ganhar pouco, trabalhar muito e ter que disputar com os colegas cliente por cliente. Mas e se você se deparar um dia, numa pequena sapataria do bairro, com um vendedor que olha para os seus pés e sabe exatamente o número do seu sapato? E se você for a floricultura e a vendedora te ajudar, com carinho e simpatia (não aquele tipo de simpatia forçada, aquele "sorriso de aeromoça") a escolher o melhor arranjo para enternecer o coração da sua amada? E se você encontrar um livreiro que, além de conhecer tudo da profissão, o ajude a encontrar aquele livro tão sonhado? A diferença entre ser bem atendido numa loja está em encontrar essas pessoas que ainda dominam os segredos, as sutilezas, a sensibilidade do seu ofício. Qualidades tão em falta no mercado. Os filmes a seguir mostram que ainda existem vendedores assim.

ÍMPAR PAR
(Brasil,2005,17 min, Direção por Esmir Filho. Com Adriana Seiffert, Alvise Camozzi, Imara Reis, José Rubens Chachá, Sarah Oliveira)

ÍMPAR PAR

FLORES PRA VOCÊ
(Brasil,2005,16 min. Direção por João Peixoto; com Vanessa Medeiros

FLORES PRA VOCÊ


É PRA PRESENTE

(Brasil, 2006, 15 min. Direção por Camila Gonzatto. Com Sissi Venturin, Tadeu Liesenfeld, Luiz Paulo Vasconcelos, Felipe de Paula, Roberta Savian,Daniel Bacchieri)
Prêmio Histórias Curtas RBS TV 2006


quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Publique-se

Hoje, 21 de agosto, a empresa onde eu trabalho, por meio da gerência de comunicação, publicou nos murais de avisos dos prédios da sede alguns poemas meus. É um bom começo, não acham?

O BOM FILHO A CASA TORNA

Finalmente, depois de protelar por muito tempo, hoje cedo eu decidi voltar a Faculdade de Letras da UFMG, onde passei dez dos meus quase quarenta de idade. Uma parte desse tempo como estudante e, depois de abandonar o curso de Jornalismo, como "pau para toda obra" do Diretório Acadêmico da faculdade. Ali eu fazia de tudo um pouco, desde o café mais disputado da universidade - era de graça - até ser confidente das pessoas. E isso tudo incluia coisas de tipo receber recados, guardar e devolver objetos perdidos e achados, organizar festas (eu não ia às festas que eu ajudava a organizar), promover excursões e viagens, aturar estudantes chatos, bater altos papos filosóficos, ficar sem fazer nada etc. Eu era estimado por todos - quase todos -, todos contavam comigo, sabiam que eu estava ali para ajudar em qualquer situação, e eu me sentia alguém importante. Bom saber que a gente deixa um lugar, volta a ele depois de muito tempo e ainda há pessoas que se lembram de você, sentem a sua falta e dizem que você era necessário, que a sua presença era agradável, que o simples fato de você existir era essencial. Vou voltar lá mais vezes e com mais freqüência, para não perder o vínculo com aquele lugar. Foi bom ter partido para ver outros lugares, para ampliar a visão das coisas, mas é sempre bom voltar.

domingo, 17 de agosto de 2008

HISTORINHAS CURTAS

Condensar a história de um ano em poucas palavras. Vir e dizer tudo, em algumas cenas.O curta-metragem, um rápido olhar que a tudo vê, que não precisa de explicar tudo para se fazer entender. Assisti a vários deles hoje o dia todo. Conheci várias histórias, tanta gente por quem me afeiçoei. Apesar de saber de antemão que era ficção. A Alice, aquela que voltou de Londres para se perder em São Paulo, não existe. O garotinho que se fantasia de sapo para contracenar com a garota de seus sonhos no teatrinho da escola,também não. Mas suas histórias existem. Elas, as histórias de nossas vidas, existem sim. Porque todo mundo sente saudade de alguém, ninguém gosta de ligar para o amor de sua vida e ouvir "deixe o seu recado ou ligue depois"; ninguém gosta de virar São Paulo ou Belo Horizonte ao avesso para não encontrá-la, para deixar de vê-la; ninguém quer ficar sozinho, apenas imaginando onde o outro pode estar nesse exato momento, e com quem, e fazendo sei lá o quê com alguém. Pior ainda é implorar, pelo telefone, pelas ondas de rádio, pela internet, por cartas e mais cartas dilaceradas para que ela volte pro lugar de onde não deveria ter partido. Por isso, cada fragmento da vida cotidiana, contado em em curta-metragem, é a história da minha, da sua, da nossa vida. Apenas os personagens é que são de ficção, vieram da imaginação de um roteirista e de um diretor. Coloco aqui os links para essas histórias, para você, caro leitor, poder concordar comigo.


ALICE
(Brasil,2005, 15 min. Direção por Rafael Gomes. Com Fernando Alves Pinto e Simone Spoladore)
Alice

O SAPO
(Brasil, 2006, 18 min. Direção por Adolfo Sarkis. Felipe Latgé,
Isabela D´Lamare e Ernesto Picollo.
O Sapo

ÁTIMO
(Brasil,1997, 30 min. Direção por Romeu di Sessa. Com Lui Strassburger e Mayara Magri)
Átimo

ONDE QUER QUE VOCÊ ESTEJA
(Brasil, 2003, Direção por Bel Bechara e Sandro Serpa. Com Débora Duboc, Leonardo Medeiros, Robson Emílio)
Onde quer que Você Esteja

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

MAIS UMA

A terceira delas
foi embora naquela hora
E eu continuei na cidade
Andando à toa
Pensei comigo: terceira e última.

DOIS MENOS DOIS

Dois menos dois é zero. Dois menos um é zero. Um mais um é um. Não sobra nada de mim se você não se soma comigo. Eu multiplicado pela falta que eu sinto sou nulo.

(Curta-metragem "Dois menos Dois", Brasil, 2007, 5 min. Direção de Clarice Falcão e Célio Porto. Trilha sonora: "Sprout and the Bean" por Joanna Newsom)

domingo, 10 de agosto de 2008

FICÇÃO: CAFÉ DA MANHÃ

(versão preliminar. Sujeita a alterações. Ou a ser descartada) Inspirado no poema "Café da manhã", de Jacques Prévert (1900-1977). Leia a tradução do poema por Silviano Santiago. Vou tentar postar aqui o curta argentino "Desayuno" e a canção "Café da Manhã" de Vítor Ramil, também inspirados na obra de Prévert.

CAFÉ DA MANHÃ

Brigamos ontem. Pretexto: ciúme. Motivo real: o amor não veio, quando nos mudamos para viver juntos. Brigamos e agora você não me olha e nada me diz. Como se não me quisesses mais, como se isso fosse mesmo verdade. Você pega a xícara de café que eu preparei mais cedo, porque eu não dormi. Você sim, dormiu como uma criança. Velei teu sono e, em teu sono, você me pediu desculpas. Você fala muito durante os sonhos, e muitas vezes conta segredos escabrosos. Sei de tudo mas não vou te dizer que eu sei. Afinal, você não está falando comigo. Você pega a xícara, derrama dentro dela o café, mexe com a colherzinha e toma despreocupadamente as minhas lágrimas misturadas com açúcar e com afeto. Das notícias do jornal, você folheia distraída os episódios do dia anterior, sem se recordar que ontem nós brigamos por causa daquela outra. Não te interessam mais as minhas novidades, não ficaste sabendo que meus versos foram publicados naquela revista da faculdade, porque antes de eu te contar você cismou que fulana tinha me paquerado na mesa do bar e deu seu espetáculo. Desde ontem você cismou de não me olhar e não me falar. Mordes o pão com manteiga e eu como o pão que o Diabo não quis comer. Seu desjejum é frugal e eu morto de fome de você. Você me deixa faminto quando se levanta, veste a capa de chuva e sai. Sem me ver e sem me falar. Enquanto isso, me deixas aqui chorando.
Até mais tarde. Vou esperar você com o jantar.


Jacques Prévert (1900-1977)
CAFÉ DA MANHÃ
Tradução por Silviano Santiago

Pôs café na xícara Pôs leite na xícara com café Pôs açúcar no café com leite Com a colherzinha mexeu Bebeu o café com leite E pôs a xícara no pires Sem me falar acendeu um cigarro Fez círculos com a fumaça Pôs as cinzas no cinzeiro Sem me falar Sem me olhar Levantou-se Pôs o chapéu na cabeça Vestiu a capa de chuva porque chovia E saiu debaixo de chuva Sem uma palavra Sem me olhar Quanto a mim pus a cabeça entre as mãos E chorei.

DÉJEUNER DU MATIN Il a mis le café/ Dans la tasse/ Il a mis le lait/ Dans la tasse de café/ Il a mis le sucre/ Dans le café au lait / Avec le petit cuiller/ Il a tourné/ Il a bu le café au lait/ Et il a resposé la tasse/ Sans me parler/ Il a alumé/ Une cigarrette/ Il a fait des ronds/ Avec la fumée/ Il a mis des cendres/ Dans le cendrier/ Sans me parler/ Sans me regarder/ Il s'est levé/ Il a mis/ Son chapeau sur la tête/ Il a mis/ Son manteau de pluie/ Parce qu'il pleuvait/ Il est parti/ Sous la pluie/ Sans une parole/ Sans me regarder / E moi j'ai pris/ Ma tête dans ma main/ E j'ai pleure.

DESAYUNO Director: Ezequiel Gaitan/Luis Fanti Fecha de realización: 1/1/2006 Duración: 08:00 Minutos Productor: Ezequiel Gaitan/Luis Fanti Protagonistas: Juan Manuel Rodriguez Vida/Denese Trautman Edición: Ezequiel Gaitan/Luis Fanti Guión: Ezequiel Gaitan/Luis Fanti Sonido: Ezequiel Gaitan/Luis Fanti Nacionalidad: Argentina

YO TAMBÍEN TE QUIERO

"Eu só te quero como amigo". Quem já não escutou essa fala da mais linda voz do mundo, da forma mais delicada e mais gentil? Nesse divertido, romântico e sensível curta-metragem mexicano, o ótimo ator Miguel Rodarte vive Luiz, apaixonado desde sempre pela sua linda amiga Tania. Ele nunca teve a coragem de se declarar a ela, suportando calado o papel de confidente e melhor amigo da garota.

Yo Tambíen te Quiero (México, 2005, 10 min, cor)
Direção por Jack Zagha Kababie com Miguel Rodarte, Adriana Louvier, Emilio Guerrero, Candela dos Santos

Assista ao curta-metragem no Youtube.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

FERNANDO PESSOA EM ESPANHOL

Aí está uma verdadeira preciosidade! Quase toda a obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos em edição bilingüe, em português e em espanhol. É um exvcelente material para os estudiosos da língua de Cervantes e Neruda. Com um recurso de procurar palavras dentro dos textos. Por exemplo, se você quiser saber todas as vezes que Pessoa escreveu a palavra "amor" é só digitá-la no campo de busca. O link é o

www.fpessoa.com.ar (CTRL+C, CRTL+V no seu browser)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

NERUDA

Não tenho postado nada de Pablo Neruda, meu poeta favorito. Eventos recentes me levaram a relê-lo em seus "Cem Sonetos de Amor". Busquei na imortal obra do poeta chileno um pouco da inspiração que me faltou, de como parece fácil para ele falar de amor à mulher amada, de como é simples e suave amar uma mulher. Posto aqui um desses sonetos, em sua versão original e na tradução impecável de Carlos Nejar. Essas palavras dizem, em espanhol e em português, tudo o que eu deveria ter dito.


PABLO NERUDA
(RICARDO NEFTÁLI REYES, 1904-1973)

CEM SONETOS DE AMOR (1959)

Soneto XLV

No estés lejos de mí un solo día, porque cómo,
porque, no sé decirlo, es largo el día,
y te estaré esperando como en las estaciones
cuando en alguna parte se durmieron los trenes.

No te vayas por una hora porque entonces
en esa hora se juntan las gotas del desvelo
y tal vez todo el humo que anda buscando casa
venga a matar aún mi corazón perdido.

Ay que no se quebrante tu silueta en la arena,
ay que no vuelen tus párpados en la ausencia:
no te vayas por un minuto, bienamada,

porque en ese minuto te habrás ido tan lejos
que yo cruzaré toda la tierra preguntando
si volverás o si me dejarás muriendo.

Tradução por Carlos Nejar

Soneto XLV

NÃO ESTEJAS longe de mim um só dia, porque como,
porque, não sei dizê-lo, é comprido o dia,
e te estarei esperando como nas estações
quando em alguma parte dormitaram os trens.

Não te vás por uma hora porque então
nessa hora se juntam as gotas do desvelo
e talvez toda a fumaça que anda buscando casa
venha matar ainda meu coração perdido.

Ai que não se quebrante tua silhueta na areia,
ai que não voem tuas pálpebras na ausência:
não te vás por um minuto, bem-amada,

porque nesse minuto terás ido tão longe
que eu cruzarei toda a terra perguntando
se voltarás ou se me deixarás morrendo.

O OUTONO DO ANO PASSADO

É mentira dizer que não te espero:
É a vida que me disse isso, agora à tarde
Todas as coisas de que me lembro trazem um nome impresso
A cena de um livro a ser escrito
O vento que carrega as folhas secas
E leva uma palavra ao pensamento;
É inútil para mim, a esta altura
Desejar o esquecimento
Tudo na história traz um rosto antigo
Que ri no retrato:
Uma lágrima desce a minha face.
No outono do ano passado, num dia cinzento como hoje mais cedo
Eu te via como no sonho eu vejo agora, tão tranqüila
Caminhando em silêncio, pensando na vida
De vez em quando me olhava
De vez em quando sorria
E eu nunca dizia que te amava.

O ATO EM SI

Isto que não está neste momento
E que no exato instante não acontece
dado como perdido
considerado ausente
Está contido no gesto
No que não se vê
E é a causa de tudo o que tem sido
Isto que não é o ato
Propriamente dito
Está em tudo o que parece não ser:
E é.

O NARCISO CEGO

Vieste no escuro, pois eu te senti
Perturbando de noite o meu sossego
Não te reconheci no meu olhar, até me repetir
no seu alheamento
Custei a acreditar
Quis até fugir com medo
Mas tiveste braços tão suaves
que eu me rendi
Vieste no ar, sem me dizer,
Só fui notar quando já estava preso
Chegaste em segredo, eu vi,
E mesmo assim eu fiquei surpreso
Roubaste a chave da minha casa
Que eu pensava que havia perdido
Entraste em minha vida em silêncio:

O espelho mais belo que eu já tinha visto.

domingo, 3 de agosto de 2008

QUEM É MESMO O ANIMAL?

Hoje à tarde eu vinha caminhando, como costumo sempre fazer, desde o centro da cidade até em casa, distante poucos minutos da Praça Sete de Setembro, se quiserem uma referência. Ao ganhar a rua Tenente Anastácio de Moura, quase chegando em casa, me deparei com uma cena tocante: um velhíssimo cão bem no meio da rua, prestes a ser atropelado pelos automóveis e ônibus que iam e vinham indiferentes. O cão era tão velho - não parecia ter raça definida e aparentava não enxergar muito bem - que quase não conseguia mais caminhar, arrastando-se com extrema dificuldade; tentei tocá-lo de volta para a calçada, cheguei até mesmo a carregá-lo, mas não teve jeito: deixei-o num canto, a sua própria sorte, para que ele, enfim, morresse à mingua. Certamente alguém deve ter feito isso antes de mim. O dono, provavelmente, não queria mais o estorvo de um cão velho, cego e doente em casa, e optou pela solução final: abandoná-lo no meio da rua. Já se falou muito em "posse responsável" de animais domésticos. Bichos abandonados nas ruas podem inclusive transmitir doenças graves como a Leishmaniose. Não significa que cão deva merecer tratamento "de gente": posse responsável é tratar o animal com carinho, alimentação saudável, vacinas em dia e higiene. É não deixá-lo à míngua quando a idade avançada chega, quando o pêlo perde o viço, quando ele já não consegue mais latir de contentamento quando o dono chega em casa. Os caras que bebiam num bar na esquina até riram de mim por causa da minha compaixão com aquele ser vivo largado na rua. Alguns transeuntes até chegaram a se solidarizar com a causa do cão, mas logo seguiam o seu caminho, provavelmente sem dar muita importância ao fato. Gosto de cães, embora não tenha nenhum a meus cuidados. Os considero os animais mais nobres e leais e, mesmo os vira-latas vagando a esmo pela rua têm uma certa dignidade, um certo brilho nos olhos, uma resignação com o seu destino errante que comove. Aquele cão ficou lá na Tenente Anastácio. Não sei mais o que é dele, se ainda vive ou se foi colhido por um auto apressado. Talvez ele seja capturado pela Zoonoses e será sacrificado em uma câmara de gás no Canil Municipal. Destino indigno para o chamado "melhor amigo do homem"

IMPREVISTO ACASO

Porque estou acostumado
Espero me surpreender -
Tem sido incerto,
Mais do que improvável:
E é por isso mesmo que acredito
E quem há de me contradizer
Se eu não duvido?
É de se supor
Que algo de imprevisível
Há de acontecer;
Via de regra é assim que deve ser:
O que não se espera
Pode aparecer
E será bem vindo.

ARMISTÍCIO

Sim, eu me declaro vencido
Agora sou teu por inteiro
Seus exércitos tomaram as ruas da minha vida
E me levaram os medos
Todos os meus irmãos que estavam presos
Na cadeia do meu porão
Agora estão livres
Meus erros que me condenavam ao degredo
Graças a tua compaixão
Foram perdoados
Sim, minha rainha, estou deposto da minha tirania
contra os meus desejos
Agora rendido eu posso confessar meu segredo
Um sentimento bonito desde sempre guardado
A sete chaves.