terça-feira, 25 de setembro de 2012

SAUDADE DE DIZER ADEUS

Talvez você não se importe com isso, mas a verdade é que hoje, mais do que nos últimos dias, estou sentindo a sua falta. Poderia dizer que nada houve, que não tivemos nada, que tudo não passou de coisas da minha imaginação. Eu não diria isso: o que aconteceu comigo foi amor. Mesmo que você não o tenha sentido, ainda que por causa da sua indiferença e falta de consideração isso não tenha passado pela sua cabeça nem pelo seu coração. Você não tem culpa disso, por que antes de eu aparecer você não existia, antes de eu te inventar, de criar um personagem para você representar, você não estava lá, eu nunca antes tinha visto você. Portanto, eu te absolvo do pecado de não me querer. Afinal, já existia uma história antes, você já era personagem de outra criação, sua história existia antes de eu criar a minha história com você. Eu não tinha mesmo o direito de me intrometer nos seus assuntos, de fazer tudo para você se sentir bem, de me dedicar a seus pequenos problemas cotidianos, de pedir um sorriso no seu rosto quando eu percebia a sua tristeza, cujos motivos eu não sabia. Desconhecida, estranha e às vezes arredia ao meu afeto: compreendo agora que isso realmente não cabia a mim resolver, porque você não me havia convidado a entrar no seu mundo, eu era um invasor do seu castelo, e ainda que eu quisesse vir em missão de paz, não deixava de ser um invasor. Você parecia ter medo, seu orgulho não deixava dúvidas de que eu estava indo longe demais por você, não te deixando ir enfrentar você mesma, antecipando seus desejos, até mesmo criando desejos para você. Agora que você foi embora, mas deixando-se ficar em coisas suas em mim, eu não tiro a sua razão em querer ter ido, porque, como você mesma disse, meu excesso de afeto estava te sufocando. É claro, não é bom se sentir sufocado, não se consegue respirar, não é possível se sentir livre com alguém te protegendo, cuidando de ti como se você fosse uma criança desprotegida e assustada. Você tornou-se independente de mim no dia em que me rejeitou, você curou-se de uma enfermidade com a qual você não se contaminou, livrou-se com antecedência de sofrer por antecipação. Foi bom que tenha sido assim, melhor dizer que foi a melhor coisa que aconteceu: antes de tudo ruir, nós desmontamos; quando você partiu eu já tinha partido, já estava me despedindo, arrumando as minhas coisas para carregá-las comigo, prevendo já o fim, me desfazendo daquilo que eu não ia precisar ou daquilo que não conseguiria levar comigo; até porque seria remoer o remoído guardar os restos, sem préstimo, não caberiam no armário do amor as mágoas, o peso de tudo faria tudo desabar de repente. Quando deixei algo para trás, saí mais leve, andei mais depressa para não ter tempo de voltar atrás; talvez eu tenha esquecido de alguma coisa importante, e é provável que tenha abandonado o que jamais deveria ter sido esquecido. Mas agora não é mais possível recuperar isso. E esta falta que eu estou sentindo hoje é da configuração das coisas daquele tempo, da maneira de pensar, sentir, querer e sonhar daquele instante.

sábado, 15 de setembro de 2012

PLATAFORMA J



- Nossa! Não vi o tempo passar! Já são dez e meia! O ônibus parte em meia hora!
- Dá tempo...a gente pode ir a pé, se você quiser.
- Sei não, acho melhor eu pegar um táxi. Não precisa ir comigo até lá, não...
- Mas eu queria ficar um pouco mais com você.
- É... mas será a última vez.
- Eu vou guardar essa noite pelo resto da minha vida. Lembra de "Noites Brancas", aquela história do Sonhador falando do "minuto de felicidade"? Pois é. Acho que esse é o meu minuto. O último.
- Eu também não vou te esquecer, meu caro. Mas está na hora de ir. Vamos?
- Só se for a pé.
- Temos vinte minutos.
- Se a gente descer aqui a João Pinheiro, é rapidinho. Daí a gente pega a Afonso Pena, chegamos na Rodoviária com uns quinze minutos. Dá tempo de eu te dar um abraço de despedida.
-Então vamos logo.

Os dois se olham. Sabem que esta é a última vez que vão se ver, depois que ela passou no concurso da Prefeitura de Montes Claros. Com a vantagem de morar perto da casa do pai, perto do serviço, no Centro, recebendo um salário até razoável em comparação com a merreca que ela ganha na C&A. Mas o mais importante é que lá ela vai morar com o ex-namorado, agora também funcionário da administração municipal. Os dois terão uma vida bem melhor que esta aqui em Belo Horizonte. Claro que ela optou pelo certo no lugar do duvidoso, que no caso é viver com esse famoso poeta desconhecido e nunca publicado, mais sobrevivente do que qualquer outra coisa. Perfeito Zé Ninguém, pé rapado, tem que pedir licença pra cair morto. Ela está certa em querer uma vida sem atropelos, sabendo que, no fim do mês, vai ter dinheiro pra pagar o aluguel, o gás.

Os dois seguem pela João Pinheiro. Estão andando até devagar para o pouco tempo que tem pra chegar ao destino. Ele, de cabeça baixa, mãos nos bolsos, o cigarro apagado no canto da boca. Ela, disfarçando uma lágrima, finge que não está triste e assustada por deixar aqui este homem, um cara até legal, que a ama de verdade e a faz sentir mulher; mas “amor não enche barriga nem paga as contas” diria a sua sábia mãe, se ainda estivesse por aqui.

Estão na Álvares Cabral. Mais uma à esquerda e já ganharão a Afonso Pena, a última linha reta em direção ao último lugar em que vão se ver. A Rodoviária de Belo Horizonte é um desses lugares de encontros e despedidas, tipo aquela canção do Milton que diz assim “Todos os dias é um vai-e-vem /A vida se repete na estação /Tem gente que chega pra ficar /Tem gente que vai /Pra nunca mais...” Pessoas que foram afastadas pelo tempo e pelas escolhas que fizeram na vida, pessoas que se arrependeram das escolhas que fizeram e querem voltar atrás no tempo, pessoas pedindo desculpas por ter que partir ou por ter partido, alegres ou tristes por voltar, fugindo do calor daqui para o calor do litoral, pessoas, pessoas, pessoas, todas elas deslocadas do seu habitat natural. Na Rodoviária, ônibus que chegam e saem levam e trazem consigo sonhos e expectativas, olhos brilhantes ou chorosos, ansiedades e alívios; gente que chega pra ficar uns dias, gente que vai ficar por toda a vida, gente que não agüenta mais de saudade da terra natal, gente que não agüenta mais viver na capital.
No caso dos nossos dois amigos, um deles vai partir para uma vida nova; o outro deve ficar para viver a mesma vida, ou a metade da vida que vivia até agora. Ela não suporta mais viver assim sem garantia, sem perspectiva, ao lado de um homem que a ama, mas que não tem certeza se almoçará amanhã; se ela partir, seguindo a razão e deixando o coração por aqui, talvez seja melhor para ela. Porque não dá mais pra ficar mudando de casa toda vez que vence o contrato e o aluguel aumenta. Toda vez juntar as tralhas e ir procurar outra freguesia. Agora ela vai ter uma casa, um emprego decente, um salário, quem sabe até poderá retomar os estudos e se formar. Já ele não se formou; chegou a começar o curso de jornalismo na Federal, abandonando-o no terceiro período. Os colegas com quem ele dividia o apartamento tinham se formado e a república ficara grande demais para ele sozinho, maior ainda para o seu bolso. Ela um dia passou na imobiliária pra pegar as chaves do apartamento do anúncio do Balcão, de um quarto, perto do Centro, barato, que dava pra ela e as duas amigas do serviço. Qual não foi a surpresa de abrir a porta da sala e se deparar com um estranho dormindo num colchonete, seminu, com uma garrafa de conhaque pelo meio. Não adiantou ele inventar que era o pintor contratado pela imobiliária: no fim ele teve que confessar que, sem ter pra onde ir, fizera cópias das chaves e estava há uma semana “morando” ali escondido. Mil desculpas depois, depois do susto e do constrangimento, ela até que achou graça da situação e prometeu não contar nada para o pessoal da imobiliária se ele não demorasse a arranjar outro lugar pra ficar. Ele poderia passar a noite ali, se quisesse. Ela até perguntou se ele estava com fome. Pra falar a verdade, a moça achou o sujeito bonito, ainda mais quase nu como estava. “Tudo bem, vou embora”, disse ela. “Volto aqui amanhã, vou ficar com o apartamento. Quero ver você fora daqui, viu?”, disse ela de um jeito jocoso. Ele:“tá bom, tá bom. Mas eu só saio se você tomar um café comigo amanhã”, disse ele, nem acreditando na própria ousadia, tímido como era. “Veremos”, disse ela, rindo. Quando ela contou pras amigas, elas falaram “Sua doida!Podia ser um tarado, um ladrão, sei lá! Porque você não chamou a polícia, o síndico? Ah, já sei! Você já foi logo se engraçando pra cima do cara, né, sua sem-vergonha?”
Foi assim que os dois se conheceram naquela tarde de sexta-feira, dois anos atrás. De lá até hoje, passou o primeiro encontro no teatro (foram ver Noites Brancas no Alterosa); passaram meses entre a primeira briga e algumas semanas de separação até a tórrida noite de amor na mesma sala sem móveis, passou a viagem a MOC para o enterro da Dona Conceição, passaram as aulas do cursinho preparatório noturno dela e um ou outro trabalho esporádico de tradução (russo e francês) para ele. Passaram dois anos, dois anos exatos até hoje, agora, noite de um dia quente de setembro, Praça Sete, poucas quadras distante da Rodoviária, destino final de uma história de amor que vai acabar em quinze minutos, a tempo de ela pegar um ônibus.
Quem rompe o pesado silêncio é ela:

- Pedro, você vai me ligar?
- Se o seu marido não ficar com ciúme...
- Ele não é meu marido. Ainda.
- Vocês vão morar juntos, não vão? Então, pra todos os efeitos, ele JÁ É seu marido...
- Vai ficar com ciúme nada, preocupa não. Só quero ter notícia daquela história da editora.
- Te mando o convite do lançamento. Traz o seu neto. Talvez seja um livro infantil. (Ele ri. Ela ri. Mas ambos não conseguem esconder a tristeza).
- Não demore tanto assim a me ligar. Quero saber que você vai ficar bem.
- Ta. Mas acho que nunca mais vou ficar bem.
- Chegamos viu? Deu tempo. O ônibus ainda não saiu.

Senhores passageiros. O Terminal Rodoviário informa: por problemas operacionais, a partida para Montes Claros programada para as vinte e três horas sofrerá atraso. Solicitamos aos passageiros que aguardem. Lamentamos os transtornos.

Ele olha para ela. Ela olha para ele. Nenhum dos dois consegue segurar o riso, que vira uma gargalhada de doidos. Quem passa não entende porque os dois estão rindo como bobos.
- Viu? O tempo está a meu favor! Ganhei mais uns minutinhos. Quem sabe até a noite inteira...vamos voltar pra casa? A gente volta amanhã cedo.
- Pára, sô. Deixa de brincadeira ....
- Desculpa. Eu só queria que o tempo parasse agora. Ou deixasse de existir. Ou que abrisse um buraco no chão pra eu entrar nele. Já sei, vou me esconder no maleiro do ônibus. Sou mestre nisso, lembra? Ninguém me descobriu até você abrir a porta da sala aquela vez...
- É, Pedro. Mas agora não estou chegando. Estou partindo. Eu é que vou me esconder. E eu acho que você não vai me achar. Eu sinto muito.

Sentam-se. Ele, instintivamente, como de hábito, segura a mão dela. Ela não o repele, ao contrário, acolhe aquele gesto afetuoso e habitual. Mas sabe que o afeto dele por ela ficará aqui em Belo Horizonte. Ela sabe que antes de o ônibus ganhar a 381 ela vai estar chorando, protegida da curiosidade dos outros passageiros pela escuridão do interior do veículo. Ele agora acaricia de leve o rosto dela.

- Promete que não vai me esquecer?
- Prometo.
- Promete que vai me escrever de vez em quando?
- Prometo.
- Promete...
- Aí já estou fazendo promessas demais.

Senhores passageiros. O Terminal Rodoviário informa: a partida para Montes Claros será realizada às vinte e três horas e vinte e cinco minutos. Embarque na plataforma J. Tenham todos uma boa viagem. Agradecemos pela compreensão.

- É...parece que é agora.
- Pois é...
- Adeus?
- Adeus.
- Você tem um minuto pra desistir dessa bobagem, Camila.
- Não, não é bobagem.
- Tudo bem. Tudo bem nada! Não quero ver isso. Vou embora antes de te ver indo.
- Tenho que entrar. Me dá um abraço.

Abraçam-se. Teria durado toda a eternidade esse abraço, é a impressão que tiveram. E pelos segundos em esse abraçou de fato durou, passou por eles tudo o que havia acontecido desde dois anos atrás; agora, aqui, tudo isso ficaria para sempre selado entre os dois, um pacto silencioso de que nenhum dos dois esqueceria daquilo tudo. O primeiro que rompesse o acordo morreria fulminado por um raio.
No meio do abraço, uma voz embargada de homem diz: “Eu te amo”. E outra voz, de mulher, responde: “Eu te amo, também”
A porta do ônibus está aberta. Só falta ela pra embarcar. Ela sobe os dois degraus, lágrimas nos olhos, tenta desesperadamente não olhar para trás. A porta do ônibus se fecha. E ele, na plataforma, a observa se ajeitar no assento perto da janela. Um último aceno, um último e inútil esforço de ambos para conter as lágrimas. O ronco do motor, a manobra suave do grandalhão de aço para se afastar da plataforma; em pouco, o ônibus já alcança a Contorno e, quando vira a primeira esquina, já não pode mais ser visto por quem chora na plataforma.Uma moça que viu a cena contou depois: “tinha uma homem chorando lá na plataforma da Rodoviária, mãe. Parece que a mulher dele foi embora. Foi tão bonito, senhora precisava ver, mãe”.



DO NADA



Chegaste com uma mochila nas costas:
Trazendo dentro dela a vida
A mãe em segredo colocou uma oração
O pai um cartão de visita
Chegaste com muitas coisas guardadas no coração
Deixadas no lugar em que você cresceu
Dentro das malas não coube o que ficou
Vieste de mãos vazias
Sem lugar pra ficar na cidade
Sem ninguém pra chorar junto contigo
Os amigos tentaram te dissuadir
Mas você quis
Você quis partir sozinha.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O NOSSO LIVRO (revisto e ampliado)

O trecho novo está em itálico

- Bom dia. Por favor. Eu queria falar com a Rafaela.
- Um minutinho, senhor. Vou ver se ela está. Rafeeeelaa! Cliente!
(...)
- Oi, Rafaela. Você não ligou. Chegou meu Neruda?
- Pedro!!! err...Senhor Pedro.(Belo sorriso)- Chegou sim! Vou lá dentro pegar pro senhor.

Rafaela. A atendente. Bonita. Pele clara, muito branca, que não vê sol; óculos de aros grossos. É a atendente da livraria mais babalada da cidade, aonde os belohorizontinos "cultos" vão pra se exibir, mostrar como são cultos e que já leram todos aqueles livros. Mas esse pessoal vai lá mesmo é para beber no bar anexo à loja, jogar conversa fora e fazer "farol", como um amigo dizia. Pedro veio buscar o livro que lhe havia sido prometido uma semana antes. Ele é o que podia ser definido como "rato de biblioteca" e "CDF". Os colegas da escola sempre zoavam dele, o chamando de "quatro olhos", por causa das grossas lentes que precisou usar desde criança; lia tudo o que caía nas suas mãos. Mas nem sempre podia entrar nas livrarias da cidade, os livros já estavam muito caros naquele tempo. Pedro considerava aqueles lugares onde se vendiam livros como templos sagrados aonde ele jamais poderia entrar, e os vendedores lhe pareciam monges que protegiam um tesouro precioso. Agora, já trabalhando (trocou o óculos fundo-de-garrafa por lentes de contato) e com uma condição melhor, emprego no Estado, pode se dar ao luxo de frequentar livrarias chiques da zona sul; gasta boa parte do salário de funcionário público que mora sozinho numa quitinete no Centro com os seus Nerudas, Pessoas e Voltaires. A estante nova, comprada à poucas semanas, já quase não suporta o peso de tanta cultura. Pedro está só. A última namorada que ele teve foi a mais ou menos... bem, não foi assim uma "namorada", se é que podemos chamar de "relacionamento" uma ou duas idas ao cinema (Almodóvar e Woody Allen) e uma ou duas idas ao Café Três Corações da Savassi. Ao que consta, a moça está em alguma cidade do interior de Minas, voltou a morar com os pais. Agora, Pedro sai do trabalho e vai à livraria pelo menos duas vezes na semana, e sempre ali está a atendente de óculos de aros grossos.
Se alguém já desconfia que o interesse de Pedro pelos livros é um pretexto para vê-la, já podemos começar a revelar os detalhes. Então: voltaremos uns dias atrás nessa história, no dia em que Pedro veio procurar aquela edição cara do Neruda, que acabara de ser lançada. Uma edição bilíngue de "Navegações e Regressos" ainda inédita no Brasil. Era dia do pagamento, quando ele se permitia algumas pequenas extravagâncias, mas aquele Neruda era um livro já acalentado a muito tempo, desde que ele ouvira falar que, finalmente, o inédito do poeta chileno chegaria ao Brasil. Pedro já havia reparado na nova balconista das outras vezes. O rapaz de antes, com quem ele havia comprado todos os outros livros, não trabalhava mais lá. Naquele dia, Pedro entrou na loja e foi direto à prateleira dos autores latino americanos, na letra N de Neruda, mas não encontrou a edição esperada. Olha para cima, e vê a garota subindo numa escada, repara em seu belo corpo, e envergonhado, baixa os olhos, olha para o outro lado. A moça nota o cliente. É tão tímida quanto ele e ruboriza ao se sentir observada, mas o ar profissional, a forçada gentileza dos atendentes, o "pois não, senhor, o que deseja?" faz com que ela se recomponha.
-Eu quero aquele Neruda que saiu semana passada, ainda tem?
-Desculpe, senhor; vendemos todos...
-Puxa, que pena. Eu queria muito...
-Posso ver se consigo no distribuidor, senhor. Leva uma semana, mais ou menos...
- É mesmo? E se eu não sobreviver até lá? (ele ri, forçando uma naturalidade que não tem).
(Ela retribui o riso, mas volta ao tom formal): Se o senhor quiser, posso fazer o pedido e ligar assim que chegar.
(tira uma caneta e um bloquinho do bolso do avental) Vou anotar o seu telefone. Prometo que ligo na mesma hora que chegar.
- Pedro. Prefiro por email, pode ser?
- Pode também.
- Então anota aí: pedromarinho@gmail.com.
- Vou fazer o pedido para a distribuidora amanhã de manhã, senhor Pedro.
- Entao tá. Eu espero. Até mais.
- A livraria (...) agradece a sua visita, senhor. Tenha uma boa noite.
- Boa noite.
Eis o primeiro diálogo. Pedro vai para casa frustrado por não ter conseguido o seu Neruda, mas algo lhe diz que esta não é a única causa da sua noite mal dormida. Alguma coisa naquela atendente havia despertado sua curiosidade. Ele ainda não se dera conta de que, como nos filmes, já tinha se apaixonado pela atendente da livraria. Pensa: "volto lá amanhã mesmo, é sábado, vou ver se compro aquele Borges também".
Já de manhã, Pedro acorda com o firme próposito de ir à livraria e convidar a moça de óculos de aros grossos para tomar um café e conversar sobre literatura latino americana. Para ir até a loja, só precisa caminhar alguns quarteirões.
Qual não é a sua decepção quando chega e, em vez da atendente bonita, encontra um simpático velhinho vestindo o mesmo avental verde e com o mesmo sorriso ensaiado de "pois não senhor, o que deseja?"
-Não, nada não. Só estou olhando.
- Fique à vontade, senhor. Qualquer coisa, é só chamar.

Pedro não está nada feliz de não ver a sua balconista predileta. Mas disfarça e fica perambulando a esmo pelas estantes entre os best-sellers da semana e os manuais de auto-ajuda, entre os romances água-com-açúcar e os livros didáticos, entre os livros-que-viraram-filmes e os filmes-que-viraram-livros, entre as séries sobre vampiros e os clones de Senhor dos Anéis e...Aqui e ali, pega alguma coisa, folheia, devolve para a estante. Tudo para passar o tempo, quem sabe a moça está lá dentro no estoque, quem sabe saiu para tomar um café e vai voltar logo. Não aparece! Será que ela não veio trabalhar hoje? Ou será que ela é fruto da sua imaginação, será que saiu de um daqueles livros, será que ela só se materializa quando ele está ali? Não, se fosse assim, ela estaria aqui... sem poder esperar mais, Pedro vai falar com o velhinho de avental verde:
- Escuta... Ontem eu pedi àquela moça um Neruda que chegou semana passada e ela disse que vai pedir pro distribuidor. O senhor sabe se ela pediu?
- Qual delas?
- A de óculos.
- Ah, sim. A Rafaela. Hoje é dia de folga dela.
- Mas ela me disse que ia fazer o pedido pro distribuidor hoje.
- Vai ver que ela esqueceu que não trabalha hoje. Segunda feira ela taí de novo. Ótima funcionária. Estuda Letras na Federal. Sabe tudo de literatura latino americana. Gosta de Neruda também. Que nem o senhor, não é?
- É. É o meu preferido.
(Só agora Pedro percebe que está falando com o proprietário).
- Será que o senhor poderia fazer o favor que lembrar a ela que eu fiz o pedido? Meu nome é Pedro, Pedro Marinho. Deixei meu email com ela.
- Eu mesmo posso fazer o pedido, senhor. Deixa eu abrir aqui no computador. Bom, vamos ver... "Pedidos"... "Pedido Novo"... "Título ou autor"... qual é mesmo o título, senhor?
-"Navegações e Regressos". Neruda.
- "Na-ve-ga-ções e... uai, já tá pedido! A Rafaela pediu ontem mesmo, um pouquinho antes da loja fechar. Boa funcionária, não disse? Tava meio avoada ontem á noite, mas deve ser a dissertação, coitada, e aquela história da separação dos pais... vou ver se dou uns dias de férias pra ela.
- O senhor disse que ela fez o pedido ontem...então que dia que chega?
- Bom, hoje é sábado. Não conta. Amanhã a gente não abre... Então, a partir de segunda...uma semana. Só na outra segunda. Mas posso garatir que o Neruda já é do senhor. E só precisa pagar quando receber. Se for à vista, damos desconto.
- Muito obrigado. Pede pra...
- Rafaela.
- ... Rafaela me ligar. Anota o telefone, por favor. Eu falei meu e-mail mas, pensando melhor, pede pra ela ligar.
(O velho sorri. Parece que entendeu): - pode deixar.

terça-feira, 31 de julho de 2012

POUCOS SÃO OS DIAS


Poucos dias depois de mudar o caminho
De ir e voltar, acostumado como sempre a não parar
Volto a ver tudo de novo como se fosse novo todo dia.

Um instante depois de me conter,
para não contar
Eu ponho o jogo a perder
pra te ganhar

...serão apenas alguns dias
até que eu volte a ter esse dia
que nunca mais vai passar.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O JOGO DAS SOMBRAS


você me causa reações conflitantes:
a vontade de querer e não estar
Diante de ti, são paixões divergentes
o desejo de fugir com a ansiedade de ficar
Você me desperta coisas esquecidas:
Antes de ti eu perdia tudo o que eu guardava
Agora, tudo o que eu encontro eu guardo para ti.
Você não nota que eu te persigo porque parece que desapareço,
nem se dá conta de que, me deixando onde estou, está me levando daqui.

UM DIA DE FOLGA

9A (Nova) SEÇÃO: SERÁ QUE SOU MESMO POETA?

Hoje vou esquecer um pouco de outras coisas:
Para ter um pouco de tempo para mim
Sei que lá fora o tráfego me espera
Quer me contrariar
Mas vou ficar aqui
E ninguém vai me encontrar
Não é tristeza, não
Nem cansaço
Que me faz ter vontade de não acordar
A vida continua a mesma
Eu é que quero me mudar
Por isso, peço a todos um pouco de paciência
Amanhã, no mesmo horário
Eu vou voltar.

AMANHÃ É SÁBADO


É mesmo:
amanhã eu não preciso acordar cedo
Posso descansar
Que hoje, meus caros, ando sonhando acordado
Com o dia em que vou dormir sossegado
Sem compromisso
Sábado mais tarde eu penso nisso
Amanhã eu prometo que já vou ter me esquecido
Mas agora, eu sinto, não tem jeito.

ASTRONOMIA


Este coração, ínfimo em comparação com o mundo
é o mesmo que contém dentro de si o que sente
e que já é,
por si só, maior que tudo
Meu coração, considerando
a distância em que se encontra
É como uma estrela vista do infinito:
parece muito menor do que um ponto.

sábado, 16 de junho de 2012

(sem título)

Como eu não tenho o que fazer a esse respeito
Vou deixar que aconteça o que tem que acontecer
Acima das minhas forças está me render ao que eu sinto

Vou parar de lutar contra mim mesmo
Para não perder

Já que não posso ter o que desejo
Vou apenas desejar
Que o próprio desejo se consumirá
Como o fogo que destrói tudo o que vê
para depois se apagar.

domingo, 10 de junho de 2012

RUA SÃO PAULO


(Andando na Rua São Paulo, uma tarde de domingo. Quatro e pouco. Pega o celular. Hesita. Disca uma vez. Erra o número. Começa de novo. Está chamando...uma voz feminina soa do outro lado da linha): Alô...
- Alô! Oi! Tudo bem? ...
- Oi! Achei que você não fosse ligar. Como vai? Quanto tempo, hem?
- É. Só que não tanto quanto eu falei no conto. Você já leu?
- Li. Gostei.
-Você reconheceu os personagens?
- (rindo)Sei não... Aquilo ali me lembra alguma coisa... conheço aquela pessoa que você descreve.
- Pois então. Eu te falei. Você acertou. Eu estava falando de você.
(Ela ri de novo) Quero direitos autorais. Afinal, a história não é sua. É minha.
- É sobre mim também. Mudei alguma coisa, só pra não te comprometer ainda mais. (agora é ele que ri).
- Você romantizou um pouco. Eu não sou tão...
- Mal dos escritores. Sempre exageram um pouco.
- Seu bobo...
- Espero que o Otacílio não fique bravo de eu ter falado mal dele.
- O nome dele não é Otacílio... alías, não tem Otacílio nenhum. Nem Otávio, nem doutorado na Alemanha. E, pelo que sei, seu pai está bem vivo ainda, eu não escrevi nenhum livro, não tou dando aula na pós, não tenho salário...e eu não viajei.
- Estava meio sem idéias, enchi um pouco de linguiça. Mas o essencial está ali. Eu queria inventar um encontro entre o meu personagem e você, era pra esclarecer as coisas, tentar entender o que tinha acontecido. Daí, bolei esse conto.
- Quanta imaginação...
- Às vezes, minha cara, a imaginação cura a realidade.
- Poxa, gastando, hem? De onde você tirou essa?
- Acabei de criar.
- Aquele e-mail que você mandou, me "convidando" para tomar um café, tá de pé ainda?
- Na hora que você quiser.
- Eu te ligo. Vou ter uns dias de folga semana que vem. Me conta as novas...
- Nada demais.
- Tá namorando?
- Não.
- Aqui, por falar nisso, essa história de ex-mulher, a tal que é "muito sistemática", é invenção sua também, não é?
- É. se fosse verdade, você seria a primeira a saber. E você, está com alguém?
- Também não.
- E a escola? Já formou?
- Não, é só no semestre que vem.
- Tá vendo? Na ficção, você já está na pós.
- Quem dera que isso fosse possível... ah, se tudo o que você escreveu fosse verdade!...
- A única verdade nessa história toda é que eu era apaixonado por você. Talvez eu ainda seja.
- Depois desse tempo todo?
- É.
- Mesmo depois que eu tomei aquele chá de sumiço, não respondia seus e-mails, quando respondia eu te tratava mal, cheguei até a bloquear você na minha caixa postal... depois disso tudo você ainda...
- Pois é. Acho que isso era amor.
- (...)
- Escuta... será que dava pra gente marcar um dia desses? Aí a gente podia conversar...opa, meus créditos estão acabando! Deu um bip aqui no meu celular...alô!alô... você está me ouvindo? Merda! Caiu.

sábado, 9 de junho de 2012

A SENSE OF HUMOR

Charlie é um comediante de stand-up que conhece e se apaixona por Laura, uma garota que nasceu com um raro distúrbio neurológico que a impede de rir. Ele fará de tudo para tentar arrancar uma gargalhada dela. Delicado, sensível, muito engraçado. Brilhante. Com Heather Morris, a Brittany do seriado Glee.

A SENSE OF HUMOR (Estados Unidos, 2012, 13 min. Escrito e dirigido por Nathan Larkin-Connoly; com Heather Morris e John Weselcouch)

sábado, 2 de junho de 2012

(SEM TÍTULO)

Perdão por não saber o que vai ser
Do passado trago o que não tenho mais, e de hoje eu não guardarei
As coisas que vou levar
Tenho apenas o presente instante
para dizer-te a que vim
Isso significa que minhas mãos estão vazias
não trouxe nada para te dar
Ainda assim, rogo-te que me aceite
no meio dos teus
Ainda que seja apenas para estar presente
Como o ar.

SÓ DE MIM


("Só de Mim", Portugal,2012. Roteiro e Direção: Ana Luisa Bairos, Joana Pacheco; com Diogo Lopes; música original: Alexandre Pereira)





"Tu não sabes quem eu sou, mas eu sei quem tu és... e só preciso de um minuto da tua atenção.
Espero que saibas a sorte que tens. O quanto eu gostaria de estar na tua pele. Poder estar na mesma cama que ela todas as manhãs. Ajudá-la a acordar da má disposição matinal.
Espero que saibas que ela não te vai falar enquanto não lavar os dentes. Não é por mal... é por medo de perder o encanto aos teus olhos. Que a consideres um ser humano comum.
Espero que saibas que ela gosta de aproveitar cada raio de sol, e que o café a deixa mal disposta.
Que escolhe a roupa que vai vestir na noite anterior, só para poder ter mais cinco minutos de sono pela manhã. Que o despertador toca cinquenta vezes até que se levante, e que mesmo assim, consegue chegar a horas.
Quero também dizer-te que ela adora histórias do fantástico. Mas não de terror! Que é capaz de saber o nome de todas as personagens de um livro antigo, mas que não se vai esforçar para decorar o nomes de todos os teus amigos à primeira...
Porque ela... ela é que sabe de si.
Tu nunca serás uma sorte para ela. Sorte é poderes tê-la na tua vida.
Sabes? Ela não é romântica por natureza, mas uma demonstração espontânea da tua parte vai fazê-la fraquejar. Porque ela é segura e doce ao mesmo tempo.
Ela não sabe cozinhar, mas vai esforçar-se para fazer o teu prato preferido. E se não estiver bom, ela vai rir-se do falhanço, em vez de corar.
E quando ela ri... quando ela ri eu tenho vontade de chorar. Não de tristeza, mas porque cada gargalhada é como uma nota musical que toca ao coração e me faz querer dançar.
Ela é tudo o que eu queria e nunca soube que tive.
Aprende que a arritmia que sentes com ela é normal!
E que a falta dela é um vazio igual à morte.
Espero que sejas tudo aquilo que eu nunca fui.
Espero que a trates bem. Porque se lhe partires o coração vais perdê-la para sempre.
Pudesse eu ter lido o futuro..."

quinta-feira, 31 de maio de 2012

SURPREENDER VOCÊ



e se os seus olhos brilhassem
como os meus estão brilhando
Quem sabe você entenderia?
Talvez nem fosse preciso dizer
se eu apenas te tocasse
se algo no ar deixasse isso bem claro pra você
Seria surpresa, quando eu te conhecesse, ver-te
diferente do que vi, e não a estranha que apareceu de repente
Mas esta que está aqui
Com todos os seus segredos guardados para mim.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

SUPERNOVA



Amanhã deve chover o dia inteiro
E nós não vamos nos ver
Estou gostando do tumulto que minha vida tem sido
Algo que veio de não sei onde
e que eu não sei o que é

Amanhã deve ficar tudo cinzento
E nós não vamos nos ver
Não vou sair a andar ao acaso
Como costumo fazer

No meio da tarde, o tempo
será de frio e de vento

E nós não vamos nos ver.



sábado, 19 de maio de 2012

AMOR MAIS SIMPLES

Essa história de razão do coração
É desculpa para não explicar o que a gente sente
e dizer que a própria razão desconhece
não faz sentido
Deve ser muito mais simples e muito mais fácil
Deve ser natural
Como o amor dos bichos, mas o
ser humano complica a questão.

RUAS DA CIDADE

(Lô Borges/Márcio Borges)
do álbum "Clube da Esquina Dois" (1978)

Guaicurus, Caetés, Goitacazes
Tupinambás, Aimorés
Todos no chão
Guajajaras, Tamoios, Tapuias
Todos Timbiras, Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial

Passa bonde passa boiada
Passa trator, avião
Ruas e reis
Guajajaras, Tamoios, Tapuias
Tupinambás, Aimorés
Todos no chão
A cidade plantou no coração
Tantos nomes de quem já morreu
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial

SANTA TEREZA

(versão final)

Um conto de Olavo Duarte

- Carlos!
- Camila!
- Sérgio!
(sábado à noite. Um boteco em Santa Tereza, como sempre cheio de gente. Lugar aonde se vai nos fins de semana à noite, desculpa porque "Belo Horizonte não tem mar". Díficil é conversar no meio desse vozerio, dos gritos dos garçons, carros estacionados em lugar proibido, calçadas repletas de mesas)

(Sérgio falando): Ois, como estão?
(Camila falando): fez boa viagem, Sérgio?
(Sérgio responde): deu problema no Congonhas. Por isso cheguei só hoje cedo aqui. Nem fui ver meu pai ainda...
(Carlos continua em silêncio, já que ele ainda não foi mencionado)
(Sérgio falando): Carlos, seu malandro! Até que enfim cê conseguiu, hem? A Camila não é osso?
(Carlos, finalmente): Você que era muito ciumento, Sérgio. Não dava pra chegar nela com você na área...
(os três riem alto)
(Carlos, continuando) ... a minha sorte foi ter aparecido a Laura, aquela ruiva lá de Brasília. Até hoje eu agradeço a ela por isso. E por falar em Laura, cadê ela?
(Sérgio): Sei lá, ouvi falar que ela tá com uma companhia de balé em algum lugar na Inglaterra, Escócia, tipo isso aí...
(Camila falando, depois de tomar um gole de vinho tinto. Está frio hoje em Belo Horizonte. Mais cedo choveu um pouco): Pois é, garotos. Homem não pode ver uma bunda nova que logo se bandeia pro lado dela, né?
(Sérgio faz que vai falar alguma coisa, mas Carlos interrompe. Tem que falar alto, porque nesse momento começa a tocar uma batida música dos Mutantes na Jukebox. Olha carinhosamente para a moça ao seu lado, brincando com o cachecol dela):- MAS EU NÃO SOU DESSES, né, Camila? O que me atraiu nocê foi seus olhos verdes, não foi?
(Camila responde, ar irônico): ...sei...olhos verdes, né? Se não fosse aquele jeans JUSTÍSSIMO que eu tava usando no dia da calourada, você não estaria atrás de mim até hoje...
(Ainda Camila, botando mais lenha na fogueira): Por falar em bun ... quer dizer, em mulheres, é verdade que você casou lá nos States?
(Sérgio): Casei. Só pra pegar o Green Card. Separamos um ano depois e ela foi pro México. Era feia pra burro. Mas acho que estava apaixonada por mim. Quem não se apaixona? (olha pra Camila, pisca o olho, joga um beijinho)
(Os três rindo alto agora)
(Sérgio, mudando de assunto, mas ainda falando de mulher): Carlos, até hoje não me conformo...aquela menina, como é mesmo o nome dela? Ah, a Sílvia, Silvinha, a do Laboratório de Informática, a estagiária de Computação. Vocês dois (faz o gesto)...sabe o que eu quero dizer...
(Camila, surpresa): CARLOS!!!QUE SILVINHA? Aquela doidinha com cara de nerd? Não acredito, Carlos!!!
(Carlos): MENTIRA DELE, CAMILA!!! Ela é que dava em cima de mim na cara dura. Toda vez que eu ia lá pegar uma impressão ou gravar um CD, ela ficava com aquele negócio de "tem certeza que não quer mais nada, Carlinhos? ...mas eu já tava com você. Não aconteceu nada, nem naquele dia que ela foi na festa lá em casa, lembra? naquela semana que a gente tava brigado, por causa do, por causa do...
(Sérgio): É, por minha causa... aliás, Carlos, sua direita é forte pacas, hem? Só de pensar, já dói...
(Carlos): E você me deu uma na boca do estômago...
(Sérgio): Quantas você tinha bebido aquele dia?
(Carlos): Sei não, mas você bebeu mais, com certeza.
(Sérgio): Lembra do Fernando?
(Camila): qual, aquele cadeirante?
(Sérgio): É verdade que ele se matou? Li na Internet...
(Carlos): Ele era obcecado por aquela loira lá do Inglês. Contam que ele entrou na faculdade armado, o povo da segurança não percebeu...era pra ser na cantina, no meio de todo mundo. Mas ela não passou no caminho pra sala de aula. Então ele subiu lá no quarto andar. Dois tiros.
(Sérgio): ele atirou nela?
(Camila): atirou, mas não acertou. Depois ele atirou na cabeça dele. Morreu lá no Odilon Behrens.
(Sérgio): ...poxa vida...
(Camila): mulher nenhuma vale isso tudo...
(Sérgio, jocoso): Olha só quem fala...
(Camila, simulando irritação): Esses doidos aí, acham que mulher é um pedaço de carne...saem matando e morrendo por qualquer coisa. Tipo: "se não é minha, não vai ser de ninguém!"
(Carlos, calado até esse momento, dá sua opinião): Eu acho que...
(Sérgio, interrompendo): Logo você, Carlos? Não foi você que pichou "Camila, eu te amo" na parede da sala de Alemão? Quanto dias de suspensão você tomou, hem?
(Carlos, indignado, mas clamando piedade): Mas eu não matei ninguém... ou matei?
(Gargalhadas agora, só Sérgio e Camila)
(Carlos, tentando falar, mas a música dos Titãs e o fim das gargalhadas dos dois amigos não deixam): ...pois é, gente, eu fiz besteira mesmo, mas eu tava louco. Depois que ocê mais esse cara aí (pára de rir, Sérgio, não tô achando graça!) brigaram na minha frente, eu achei que você ia correr pros meus braços...não era isso que você fazia sempre que esse bruto do Sérgio te magoava?
(Sergio, irônico de novo, mas desse vez em tom mais suave): Grande Carlos, o "consolador das meninas do terceiro ano".
(Carlos, agora mais calmo, exibindo a namorada ao lado, como um trófeu): deu certo, não deu? Olha só o que eu tomei docê.
(sérgio, mudando de assunto): Quando vai ser o casório? Eu vou ser convidado, não vou?
(Camila): o Carlos tem que terminar aquele negócio lá do filme. O pai dele disse que não vai mais dar o dinheiro. A captação lá na secretaria deve sair em novembro, eu acho.
(Sérgio): Então é verdade, mesmo? O filme, aquela história toda, finalmente?
(Carlos): É! Viu? Você ficava me zoando, lembra? me chamava de quê mesmo?
(Sérgio e Camila, juntos, rindo. Ele "enquadrando" o ambiente com os polegares e os indicadores em forma de tela): "Woody Allen do boteco do Santa Tereza"
(Carlos): Vocês dois, não entendem nada de cinema...só de blockbusters americanos. Detestei ir com vocês naquele tal de Sexta-Feira 13...na verdade, eu tava era com ciúme da Camila, indo sozinha ao Minas Shopping com o garanhão do primeiro ano...
(Sergio): Segurando vela...
(Camila): é mesmo, reparei. Você não se desgrudou de nós dois o dia todo. Tava até chato.
(Carlos): fim da história. Vocês foram embora. E eu fiquei chupando dedo. Pra onde vocês foram naquele dia? Dallas ou Caribe?
(Sérgio, jocoso): Não. Foi pra um daqueles ali da Paraná mesmo. Ou Santos Dumont, sei lá... tava sem dinheiro.
(Camila): Deixa de ser bobo, Sérgio! Não deixei você encostar um dedo em mim. Você me deixou foi em casa, mesmo. Tava furibundo porque eu não dei pra você.
(Sérgio, ainda mais jocoso): Não fica falando isso na frente do seu noivo, Camila...
(Carlos finalmente abre a boca): Pois é, né Sérgio? ... eu fui mais esperto do que você desta vez. Bem feito você não ter conseguido vaga pro Festival de Inverno. Ouro Preto, noite de lua cheia. Naquela república lá, duas da madrugada. (repete o gesto obsceno). Já sabe o que rolou, não sabe?
(Camila, muito envergonhada): Carlos...

(Nem notam os três amigos que o bar já está praticamente vazio, são mais de quatro da madrugada, a Jukebox agora toca Milton Nascimento, "Itamarandiba". Os garçons agora descansam na rua, alguns fumam, outros discutem a rodada do fim de semana do Campeonato Mineiro; agora, Camila, Sérgio e Carlos estão em silêncio. Três amigos mais de dez anos separados pelo mundo. Carlos sempre amara Camila, mas o seu melhor amigo, Sérgio, era o namorado dela, embora não a amasse tanto quanto ele. Eles estavam juntos, os três, em quase tudo, menos nas turmas de Inglês. Brigaram juntos mais de uma vez, foram os três juntos ao enterro da vô de Camila, estavam juntos quando Sérgio, alcoolizado, bateu o carro na saída do Campus. Algumas escoriações e alguns dias depois, Sérgio reaparece na faculdade, justamente no dia da primeira briga e do
primeiro beijo de Carlos e Camila. Mas um dia Sérgio não estava mais junto de Camila e Carlos. Um voo em Confins, com destino aos Estados Unidos os separa. E lá se vão dez, quase onze anos. Essa noite de sábado em Santa Tereza foi combinada pela Internet, depois que Carlos consegue finalmente encontrá-lo no Facebook. Tentou todos os "Sérgio Almeida", mas o amigo era "Sergim.almeida_256", com underline e tudo. Achou o codinome certo por causa de um quarto colega, que até agora não tinha aparecido nessa história: o Fred, "frederico.rodelhausen@gmail.com, o único Frederico Rödelhausen que poderia existir na face da terra).

(Voltando à mesa, agora é Carlos quem fala): puxa, não vi que tava tarde assim. Vamos, Camila?
(Sérgio): tá cedo, gente. Nem cinco horas ainda.
(Camila): Amanhã, quer dizer, hoje, tem o aniversário da tia Júlia. Ela vai fazer cem anos. Não dá pra perder. Lembra dela, Sérgio? A de Sete Lagoas. O Carlos é que vai dirigir. Não gosto de dirigir na BR. Ele tem que dormir, já está meio altinho, não é, meu bem?
(Sérgio, imitando a voz de Camila, jocosamente): "Já está meio altinho, não é, meu bem?" Ai, ai...cara fresco...
(Os três riem alto. O garçom vem falar: "Por favor, pessoal. Temos que fechar. Obrigado por terem vindo".
Carlos, Camila e Sérgio saem para a rua. Uma brisa suave balança as folhas das árvores da Praça Duque de Caxias. Estão os três abraçados. Camila entre os dois. Sérgio (ou seria Carlos?) começa a cantar baixinho, e os outros dois acompanham: "Mudaram as estações/e nada mudou/mas eu sei que alguma coisa aconteceu/ tá tudo assim tão diferente/se lembra quando a gente/chegou um dia a acreditar/que tudo era pra sempre/sem saber/que o pra sempre... (Carlos esquece a letra, Camila lembra: "É sempre Acaba"... depois é assim, ó: "Mas nada vai conseguir mudar o que ficou... (os três continuam a música)/Quando penso em alguém só penso em você/E aí, então, estamos bem/Mesmo com tantos motivos/Pra deixar tudo como está/Nem desistir, nem tentar agora tanto faz/Estamos indo de volta pra casa...*)

A manhã nasce na rua Mármore.


*A canção é "Por Enquanto", de Renato Russo, do álbum "Legião Urbana" de 1985




Breaking news

Vou ser titio. De novo. Minha irmã Denise acaba de ligar avisando. Chega em fevereiro.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Vi você chegar
Mas você não percebeu
Que, na verdade era eu
Que estava voltando
Uma vez que vivi de novo
ao perceber que não estava sonhando.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

SAVASSI




- Você está atrasada.
- Tava me esperando a muito tempo?
- Não muito, só uns seis anos e algumas horas...
- Você mudou... o que houve com seu cabelo?
- É a idade, né? Já entrei na fase dos "enta". Talvez eu nunca mais saia dela.
(Ela dá uma deliciosa gargalhada, igual aquelas de seis anos atrás; e as piadas ruins como essa não mudaram nada)
- Recebi o convite da formatura. Desculpa não ter ido.
- Tudo bem. Tava chato mesmo...Ah, eu soube do seu pai. Sinto muito.
- Pois é..."parou de sofrer", como se diz.
- Você casou, não foi?
- Descasei. Dois anos.
- O que aconteceu?
- Ah, sei lá...ela é muito sistemática; boa pessoa e tal, mas muito sistemática. Somos amigos. Mas não tem mais amor, não. E você mais o Otávio... não é esse mesmo o nome dele?
- Otacílio. Ele foi fazer aquele doutorado na Alemanha. Não voltou mais. Foi melhor assim.
- Ah, parabéns pelo seu livro. Soube que ele ganhou aquele prêmio lá,como é mesmo que chama?
- Pois é. Eu estou usando ele na Pós. Dou aula lá. Não é grande coisa, mas o salário é até razoável. Estou pensando em ir pra fora também. Talvez Buenos Aires, La Plata... tem um pessoal da época do intercâmbio. Tenho onde ficar se eu for.
- Lembro que como você estava na época que estava escrevendo sua dissertação.
- Pois é, era tenso mesmo. Mas valeu. E você, lá na prefeitura? O projeto de leitura, como tá?
- Então, mudou o prefeito, muda a secretário. A coisa empacou. Sabe como são esses políticos...Toma um café?
- Sim, aceito.
- Preto, com adoçante. Tá vendo com eu ainda me lembro? Seis gotas de adoçante.
- É. Seis gotas de adoçante.
- Você guardou aquela carta?
- Qual? A primeira?
- Não. A terceira. A do dia do Noites Brancas. Quando eu penso nela, era bem piegas, né?
- Éramos mais jovens...você está perdoado. Eu achei bonito aquela coisa de "braços, portas e coração abertos".
- Pois é...
- Pois é...
(algum silêncio depois, ele olha pra ela, ela olha pra ele. Meio que constrangidos por estarem frente a frente depois de tanto tempo, quase sem ter mais o que dizer, todos os assuntos triviais já acabaram...salvos pelo garçom e duas xícaras de café)
- Escuta? Porque você não atendeu o telefone aquele dia? Você tava em casa sim, que eu sei. Sua mãe me atendeu, aquela história de reunião não colou. Até porque eu liguei pra escola, ninguém te viu lá.
- Você está com raiva disso até hoje, meu caro?
- Não. Não é raiva, não. Só quis saber porque você tava me evitando.
- Eu tava meio confusa com aquela história toda. Afinal, não é todo dia que você recebe uma declaração de amor do seu melhor amigo.
- Podia ter sido diferente, eu acho. Se a gente tivesse se falado depois, eu teria te explicado tudo. - Faz tanto tempo, porque a gente está falando nisso até agora? ...passou, não passou?
- É. Acho que sim. Desculpe. É que a gente nunca falou sobre isso. Até agora. Você sumiu. E só. Até hoje eu me pergunto o que foi que eu fiz.
- É, meu caro, eu também te peço desculpas. Devo ter te magoado bastante naquela época. Eu não devia ter simplesmente sumido daquele jeito. Mas agora não é hora de ficarmos remoendo as velhas mágoas, não é mesmo?
- É...
- Aqui, acho que está na hora de ir. O avião...
- É mesmo, o avião.Fica muito tempo lá?
- Nada. Só dois dias.
- Será que a gente vai ser ver de novo? Ou vamos ficar mais seis anos longe um dos outro?
- Escreve pra mim. Você tem meu email ainda, não tem?
- Claro. Todos eles. (Ela ri de novo. Mas agora está séria).
- Preciso ir. Bom te ver.
- É. Também gostei de te ver.
- Até mais.
- Até mais.
E desapareceu na esquina.

ANA LUIZA, A PROTETORA DOS BICHOS

Fiquei orgulhoso como pai hoje. Minha filha, a Ana Luiza, me ligou hoje à tarde para me contar: depois da escola ela pegou a van para voltar para casa. No caminho, de dentro do carro, ela presenciou um grupo de garotos agredindo um filhote de poodle na rua com chutes e jatos de água fria. Sem pensar duas vezes, ela mandou o motorista parar. Desceu, ralhou com os garotos, tomou o bichinho desfalecido nos braços e levou-o para um veterinário na rua de casa. Lá, o animal recebeu cuidados e se restabeleceu. Como já tem uma cadelinha, a Bia, Ana Luiza vai doar o cãozinho cuja vida ela salvou para uma amiguinha que mora no prédio dela. Fico feliz que ela tenha herdado de mim, além do meu DNA, essa compaixão por todas as criaturas de Deus; como eu, ela abomina a crueldade, a maldade, a covardia contra seres indefesos; nós "seres superiores" e "racionais" já tão indiferentes a toda forma de violência, não nos importamos em presenciar todos os dias os maus-tratos impingidos aos animais, não nos revoltamos contra aqueles que os abandonam, não nos indignamos mais com nada. Achamos até normal e natural que seja assim. Graças a Deus ainda há no mundo pessoas como a minha querida filha, que não toleram a maldade, que não cruzam os braços, que não fecham os olhos à iniquidade. Esse ato que ela protagonizou hoje deveria servir de exemplo para os jovens de hoje em dia, deveria lhes tocar o coração como tocou ao meu, como me comoveu e emocionou. Parabéns, Ana Luíza. Muito digna a sua atitude, louvável a sua coragem, invejável sua presença de espírito e sua iniciativa. Que as bençãos de Deus sejam sempre abundantes em sua vida.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

METADE DO INFINITO

Incoerente é ser a metade de algo que é infinito No tempo e no espaço Mas este é o meu caso: A parte que falta em mim é do tamanho do universo e caberia perfeitamente em meu coração.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Hoy no Estoy

Um divertido curta de Gustavo Taretto, o diretor de "Medianeras"

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Perdas e danos

Meu coração: são, salvo E só.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

SESSÃO DE SÁBADO

Acho que te conheço do cinema:
quando fui ver Medianeras
Fui sozinho ao Belas Artes sábado à tarde
Vi uma garota lendo Kafka
E o olhar daquele dia parece o seu olhar
Esta cidade é um arraial cosmopolita
todos os estranhos se conhecem de algum lugar.