domingo, 30 de agosto de 2009

AMOR NÃO CORRESPONDIDO

Do blog da portuguesa Ana Oliveira



sexta-feira, 28 de agosto de 2009

UM HOMEM LIVRE

Acostumei a ver esse muro na minha frente. Nem percebia mais que havia um portão e já tinha esquecido que um dia ele seria aberto pra mim. Do meu crime eu não vou falar nessa história, só digo que foi coisa de dez anos que fiquei preso. Eu não sabia escrever antes de entrar nessa prisão. Quem me ensinou foi o Professor, que até ano passado cumpria pena por homicídio, matou a mulher e o amante dela a tiros. Na rebelião, foi a vez de ele levar um tiro, esse de um polícia. Lembro que sempre o filho mais novo dele (o único que ainda vinha visitar o pai) trazia um livro. Ele lia pros colegas de cela. Era engraçado ver aqueles homens rudes, uns condenados por tráfico, uns por assalto à mão armada, uns por homicídio,ficarem encantados com aquelas histórias maravilhosas que o Professor contava. A minha preferida era a do Zadig, de um tal de Voltaire, contando sobre um princípe persa que viveu altas aventuras; tinha outra muito legal que era a daqueles hobbits (acho que é assim que escreve), uma história de um anel mágico que fazia muito poderoso quem o possuísse; aqueles caras, que nunca haviam tido na vida um momento de fantasia, vibravam com as histórias que o Professor trazia, tinha até torcida pelos personagens. Uma vez, o Rubão, que pegou uns anos por causa de um carregamento de maconha, teve que disfarçar as lágrimas, quando soube que Romeu e Julieta tinham morrido; "Eu matava esse padre burro, desgraçado, que idéia mais sem noção" disse ele, quando o Professor contou que a idéia de dar um remédio pra Julieta parecer como morta foi do Frei Lourenço; não adiantava dizer que era uma estratégia bolada pelo padre pra que Romeu pudesse resgatar a amada e fugir com ela: Rubão batia as mãos na mesinha, irado, xingando de tudo que era palavrão o nome do santo homem; era bacana ver aqueles caras rindo que nem crianças (acho que eles se tornavam as crianças que nunca haviam sido) quando o Professor narrava as peripécias de Dom Quixote e do fiel escudeiro Sancho Pança. O Chico do Canivete e o Malaquias até fizeram um teatro com a história; no dia da apresentação, veio o Diretor da Penitenciária pra assistir; deu até na televisão, que um grupo de presidiários estava montando uma peça baseada em Dom Quixote de La Mancha; a biblioteca do Professor serviu de cenário e a Dulcinéia era o Manuel, vestido de mulher (todos sabiam que ele era gay e que tinha umas histórias esquisitas com o Rubão). Ano passado o presídio foi de novo reportagem na televisão, mas dessa vez não era ficção. A rebelião que matou o nosso querido Professor (morreu tentando defender a biblioteca) também levou o Rubão, o Malaquias, o Manuel, o Chico do Canivete, os dois primeiros de tiro e os outros, juntos com mais cinqüenta, no incêndio do pavilhão três, o nosso. Eu escapei todo chamuscado, tive que sair pra ir pro hospital de queimados, voltei pra cela dois meses depois.Como só faltava seis meses pra acabar minha pena, fiquei quietinho lá dentro, me comportei; cuidei da biblioteca do Professor e ainda recebia a visita do filho dele, que continuava trazendo livros; essa semana, minha última na cadeia, ele trouxe o livro daquele cara que atravessou a remo o Oceano Atlântico, o tal de Klink; diz ele na dedicatória que é pra eu "ganhar o mundo, enfrentando as ondas do mar bravio"; o rapaz como que me adotou como pai, depois da morte do Professor. Hoje estou saindo, e o rapaz disse que eu podia passar uns dias na casa dele, que a esposa não se importaria, que sabia que o sogro gostava muito de mim, que era eu o melhor amigo dele.
Estou indo embora daqui: ficar preso claro que não é bom, e ser ex-presidiário deve ser pior ainda, os outros vão te olhar com aquela cara de espanto, ninguém vai te dar emprego, você só vai arrumar mulher se for na zona. Mas eu guardo boa lembrança desse lugar: vou lembrar sempre do Professor contando a história das Mil e uma Noites prum bando de caras sentados no chão do pátio do banho de sol, eles com os olhos brilhantes e sonhando com as suas princesas, com suas Sherazades que haviam ficado lá fora, do outro lado do muro da cadeia; vou lembrar sempre do dia que eu consegui pela primeira vez escrever alguma coisa, e que o Professor bateu palmas e riu alto; o guarda achou que ele tava ficando doido. "Nada não, seu guarda, é que esse menino finalmente está deixando de ser burro", disse ele. O guarda deu de ombros, olhou pra mim com uma expressão neutra e continuou a ronda pelas celas. Eu a partir daí me entusiasmei e até me inscrevi naquele programa que alguém escreve para um prisioneiro e ele responde. Foi assim que eu conheci a Rosalva; ela me escrevia todo mês, dizia que se apaixonara por mim,e que também lera os "Cem Sonetos de Amor", do Pablo Neruda; ela disse que adorou os poemas (horríveis) que eu escrevi pra ela, e respondeu com uma cartinha perfumada. Os caras da minha cela cairam de gozação em cima de mim, me chamavam de Don Juan (a história do sedutor era contada pelo professor). Perdi a conta das vezes que sonhei com ela, tinha um retrato 3x4 colado no espelhinho ao lado do meu catre; Rosalva era morena, e só de imaginar seu corpo, que eu não via, me dava alguma coisa que eu não sentia desde que eu ainda estava na rua e tinha as minhas mulheres. Da última vez que eu escrevi pra ela, eu contei que já estava pra sair, mas até hoje ela não respondeu, não sei porque. Só sei que todo dia eu enchia o saco do guarda do pavilhão três, que era e ainda é meu amigo; Getúlio, esse o nome do guarda, era o que distribuía as cartas pros presos.
Aliás, é ele que tá me chamando agora. Ele está com uma chave na mão, uma expressão zombeteira na cara, como se dissesse "Aí, seu trouxa, vai pra rua, encarar a realidade". Mas ele me dá um aperto de mão, um tapinha nas costas e me diz: "Acho que cê vai querer voltar pra cadeia quando ver como é que tá lá fora. Vai com Deus, cara".
O portão pesado se abre. Um passo e eu deixo dez anos na minha vida. Dez anos encarcerado, vendo "o sol nascer quadrado" como se diz na linguagem de malandragem. Um vira-lata fuça um monte de lixo na calçada; os carros passam deixando a fuligem do escapamento; as prostitutas se espalham, os botecos estão cheios de desocupados; uma viatura passeia por ali, dois ou três mal-encarados dentro, fazendo ronda; eu indeciso com meus primeiros passos livres em dez anos, não sei pra onde ir, não lembro mais o ônibus que vai pro meu bairro, parece que os números mudaram. Entro num bar, peço uma bebida (Getúlio, escondido, me deu uma nota de cinquenta),bebo e sinto como se nunca tivesse saboreado um belo copo de cerveja na vida. Estou livre, e não sei o que fazer. Acho que vou passear no parque, ver as mulheres, sentar num banco de praça e ficar ali só olhando, pensando na vida. Quando começa a anoitecer, vou pros lados da zona, mas o que sobrou da nota de cinquenta não paga um programa nem com a prostituta mais barata do lugar. Resolvo então procurar o caminho da casa de minha mãe, se é que ela vai querer me ver; durante esses dez anos, dá pra contar nos dedos quantas vezes ela foi me visitar - acho que ela tinha mais era vergonha de ter um filho na cadeia. No fundo, no fundo, como toda mãe, ela me amava. Pergunto daqui e dali, e descubro o número do ônibus; a rua de casa não mudou muito: ainda tem o sacolão, o boteco, e agora tem uma tal de "lan-house" onde era a Pentescostal; minha mãe sempre tentava me levar pro culto, mas quando eu ia era pra ficar zoando os hinos, botando palavrão nas letras dos cânticos de Louvor. No dia que eu fiz aquilo (não vou contar o que é), minha mãe estava no culto e foram buscar ela pra me ver na delegacia. Imagino a vergonha que ela deve ter passado, coitada, entrando no carro da polícia, no meio do povo, e o pastor dizendo pra ela que em nome de Jesus o filho seria inocentado.
Toco a campainha. Uma senhora de óculos, encurvada pela idade, andando com dificuldade, vem atender, olhando desconfiada para este homem estranho à porta; quando ela percebe que sou eu, ela me olha, enchendo os olhos de água e diz só isso: "meu filho, entra.
Tá frio aí fora".

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O SOFÁ (VERSÃO DE TEREZA, MULHER DE JÚLIO)

Tem razão: esse sofá é meio cafona mesmo. Hoje mais cedo, reparando bem nele, notei que está puído e encardido, de tanto o Chiquinho deixar cair chocolate nele. Lavar não adianta mais. O moço que eu chamei várias vezes já disse: "Dona, não tem mais jeito, não. O jeito é comprar um novo". Mas eu olho pra esse sofá e me lembro do dia que a gente foi morar junto. Lembro de você e o Pedro carregando ele escada acima no nosso primeiro apartamento; lembro que você dormiu nele aquele dia que a gente brigou a primeira vez, mas tarde da noite eu senti a sua falta na cama e vim pra sala. Eu me deitei do seu lado, você me abraçou, balbuciou alguma coisa incompreensível e voltou a dormir. Lembro de você brincando de aviãozinho com o nosso filho, você deitava no sofá e levantava o menino lá no alto, imitando o barulho do motor; a gargalhada dele dava gosto de ouvir. A gente era feliz, ou eu pensava que a gente era, Júlio. Feliz até você esquecer um papel no bolso da calça, tinha "Clara" e um número de celular escrito nele. Você tentou explicar, se complicou, e no fim teve que dizer que estava com ela já um tempo, aí que eu entendi aqueles estranhos "serões" no escritório. Me sinto meio culpada por isso, de uns tempos pra cá eu ando meio "caída", meio descuidada, já não tenho mais aquele "fogo" que eu tinha quando a gente se conheceu. Se não fosse por mim, Júlio, você não tinha tomado coragem aquele dia da calourada, até hoje estaria me olhando com aquele olhar de cachorrinho abandonado, que era até bonitinho, sabe? Além disso, essas brigas da gente já estão no limite, você tem toda razão de ficar chateado comigo, eu arranjo qualquer pretexto pra te tirar do sério, eu tenho feito de tudo pra te atazanar. Agora que você resolveu de vez pular fora, eu não tiro a sua razão. Nenhum homem gosta de mulher que fica de marcação cerrada em cima, com ciúme até dos amigos; "você está me sufocando", você diz sempre; "você não acredita quando eu falo a verdade", dói admitir, mas você tem razão. Agora que eu sei que você não está mentindo, que essa tal de Clara existe mesmo, que não é só miragem da minha imaginação ciumenta, eu estou morta de medo, nunca senti isso antes, nunca pensei que pudesse te perder, ainda mais depois de tantos anos de casados. Chorei o dia todo hoje, nem banho eu tomei, tentei dormir à tarde, e já liguei pra faculdade avisando que não vou dar aula à noite. O Chiquinho está na casa daquele amigo dele, só chega mais tarde, eles dois estão fazendo um trabalho de história, eu acho; papai vai levar ele pro sítio amanhã e só volta depois do feriado, terça-feira; pode deixar, eu converso com ele, explico direitinho, apesar de que eu é que não estou entendendo nada. Não estou precisando de dinheiro, não. Também não estou preocupada com as contas, obrigado por se lembrar delas por mim. Minha cabeça não tem espaço pra essas coisas. Tudo o que me aflige, o que me desorienta, o que me faz avançar o sinal, é essa história de eu te perder, de você ir embora, de me trocar, sua mulher a vinte anos, por uma garotinha que você pôs pra trabalhar no seu escritório, uma "vigaristazinha qualquer" que vai tomar o meu lugar na sua cama, que vai comprar outro sofá com você. Até aquela viagem que você tinha planejado pra gente, você vai com ela; aquele anel que eu te mostrei, lembra? Pois é, o que eu fiquei sabendo é que você vai comprar um mais bonito ainda pra sua amante...ai, que palavra horrível, Júlio! Parece que a sua mulher virou uma coisa sem valor, um traste inútil, que quando já não presta mais pra nada você vai lá e compra uma novinha, sem defeito, que não está gasta pelo tempo. Não quero conhecer ela, não...vê-la só vai piorar a minha situação, Júlio; eu vou me comparar a ela, vou ver por quem e porque você está me trocando. Com certeza ela é bem mais nova que eu, e está atrás de um homem bem de vida que nem você. Quando é que você a conheceu, mesmo? Foi naquele dia que você fez as entrevistas com os novos estagiários ou naquela festa na casa do professor Alfredo? Agora não importa mais, Júlio. Não precisa mais explicar nada, eu vou tentar entender, vou tentar continuar viva depois dessa. Não, que drama que nada! Eu nunca passei por isso, eu nunca te perdi, não sei como reagir, não tenho força pra isso. Já está ficando tarde, está frio lá fora; você quer aquela blusa azul da faculdade emprestada? Depois você manda o motoboy da firma me devolver lá no meu trabalho. Você não mudou nada, Júlio: continua falando que não sente frio, depois quando fica gripado, eu é que tenho que dar uma de enfermeira...ah, é...nem isso eu posso ser mais. Pede pra essa Clara cuidar bem de você, ser carinhosa que nem eu sou... Diz que você gosta de doce de abóbora com coco...eu sei fazer, aposto que ela não sabe nem fritar um ovo...vocês vão ter empregada? Hoje a Dona Iolanda não veio, o marido dela está doente, falei que ela pode ficar com ele no feriado. Não, ele está internado ainda. Ela vai te agradecer...mês passado ela até me perguntou sobre isso, se você não podia adiantar mesmo o pagamento dela, ela mostrou a receita, absurdo mesmo o preço dos remédios, ela morre de vergonha de te pedir alguma coisa... "Sei lá, o Seu Júlio pode querer me mandar embora", Quê isso, Dona Iolanda! A senhora está com a gente a tanto tempo! A senhora é que nem a avó do Chiquinho! Falando em empregada, vou fazer um cafezinho pra gente, quer? (Fica mais um pouco). A chave do Corsa? Tá ali, ó. Na mesinha, do lado do nosso retrato. Vou lá ver o café.
"Tereza, sua imbecil! Você vai deixar ele ir fácil desse jeito? O que essazinha tem que eu não tenho? Tá certo que ela é mais novinha, mas eu sei do que esse cara gosta, eu entendo ele, eu tolero os piores defeitos dele...até aquela mania de colecionar carrinhos, o que muita mulher deve achar infantil...aqueles fios brancos no cabelo deixam ele tão charmoso, aquelas rugas que já começaram a aparecer no canto dos olhos, meu Júlio é um homem tão bonito quanto no dia em que veio a primeira vez, tão novinho , tão bobinho, me perguntar qual era a diferença entre "injúria" e "difamação". Pra dizer a verdade, eu é que quis ele, eu é que tomei a iniciativa, e o coitado, tão inexperiente, tão tímido, tadinho; com certeza, a cantada fajuta na calourada foi o Pedro que ensinou pra ele...mas deu tão certo que até hoje, ou melhor, até agora, o resultado estava ao meu lado! Não vou deixar ele me ver chorando, e vou tentar disfarçar que estou tremendo que nem vara verde...vou lá pra sala, vou ser forte ao menos por enquanto. Só quando eu ouvir o barulho da chave trancando a porta do lado de fora, o elevador descendo, o motor do carro ligado e o portão fechando é que vou me desfazer em lágrimas, cair no chão que nem uma criança e vou acordar amanhã deitada no sofá, com uma olheira desse tamanho, uma dor dilacerante no peito e um vazio imenso no coração...
Vou lá pra sala... quer ver como você é forte, Dona Tereza?

Hã? Como? Como assim não vai mais? Como assim desistiu? Verdade, Júlio? Você ainda me ama? E a Clara? Sério? Vai falar com ela? Tem certeza? Meu Deus, meu Deus!Meu marido me ama!Desculpa Júlio, desculpa, meu amor, tudo que eu falei era mentira, você não é nada daquilo que eu falei! Tive tanto medo, meu amor! Não ia conseguir viver sem você!Me perdoa, pelo amor de Deus, eu te amo. Não vou brigar mais com você, nunca mais. Ai, estou tão cansada, estou exausta, Júlio. Chorei o dia todo, sabia? Nem tomei banho, você quer a sua mulher assim mesmo, cheirando mal, nem lavei o cabelo, vai ver que nem escovei os dentes...Ai, Júlio, você não mudou nada, mesmo...

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O SOFÁ



Vou deixar aqui aquele sofá horrível que você quis comprar, achava que combinava com a cor das paredes. Eu não gostei, mas pra te agradar - eu sempre fazia isso - pus no meu crediário. Naquela época, o salário de um funcionário público metido a estudante de direito só dava pra isso mesmo: pra pagar a faculdade e os carnês. Nós nos amávamos tanto que nem isso era problema. Mas a gente foi morar junto, veio o Francisco, você teve que trancar e seu pai cortou sua mesada. Foi difícil convencê-lo a vir visitar o neto, mas você sabe como são os avós: o velho se encantou no ato pelo garoto. Por isso, acho que ele não vai pensar duas vezes em levá-lo pro sítio esse fim de semana e no feriado, assim o menino não vai sofrer tanto quando o pai dele for embora de casa. Depois você explica pra ele porque que papai teve que se mudar. Você sabe que a gente sempre escondeu do menino as nossas brigas, evitava falar alto perto dele. Mas eu acho que o Chico percebia quando algo não estava bem. Lembra quando a professora dele ligou pra dizer que o garoto estava chorando no banheiro da escola? Pois é: ele sabe de tudo, mas é tão inteligente que lida com isso sozinho, finge que não está nem aí, que fica na dele. O Chico é tímido que nem o pai, com quatorze anos ainda não está paquerando as meninas do colégio. Eu tinha vinte e cinco quando te conheci, no terceiro período, quando você estava dando monitoria de Direito Penal. Ficamos uns dois semestres naquele chove-não-molha, até o Pedro (sempre o Pedro) te chamar para aquela fatídica calourada. "Ah, vem você também, Júlio", disse ele. Fui a contragosto, detestava festas, ainda mais calouradas, aqueles cabeludos bêbados e drogados esgoelando aqueles rocks horríveis, mas eu estava "decidido" a de umas vez por todas abrir o jogo, pra te ganhar ou perder sem engano, que nem na música da Marina. Pois é, nove meses depois, a barriguda mais linda do mundo deu à luz um garotinho loirinho e bochechudo que batizei com o nome do meu avô materno. Vivemos no aperto uns dois anos, até eu me formar. Graças ao professor Alfredo, aliás o Desembargador Alfredo Ramos Nunes, rapidamente eu consegui arranjar um bom emprego e nome na carreira. O apartamento mudou, mudou de bairro, mudou o salário, mas o sofá dos tempos de faculdade ficou, lembra os tempos felizes, você sempre diz. Mas pra onde eu vou agora ele não vai. Porque você não vai junto. Clara até que perguntou se você não gostaria de conhecê-la, poderiam até ser amigas, não estamos virando inimigos só porque estamos nos separando, ela diz. Mas você não quer, eu aceito. Depositei o primeiro cheque da pensão do Chiquinho na sua conta, paguei a mensalidade do colégio, e se ele precisar do dinheiro pro intercâmbio diz pra ele que mês que vem eu vou abrir uma caderneta no banco. Não se preocupe com o carro; as multas e o IPVA já foram pagos, eu assumi aqueles pontos do dia que você passou o sinal, lembra? Então, acho que é isso. Tá aqui o endereço e o telefone do escritório novo, pode ser que Clara atenda, seja simpática com ela, tá? Um café? sim, eu aceito. Não, não tá fazendo frio. Pode deixar, eu tenho uma blusa no carro. Não se incomode comigo, não. A Dona Iolanda não veio hoje? E o marido dela, já saiu do hospital? Vou ver se adianto o salário dela, coitada...esses remédios, tão caros...Tudo bem, eu espero. Você viu as chaves do Corsa? Ah, sim, no lugar de sempre, ali, perto do "nosso" retrato. Você vai deixar ele ali? Vai na cozinha, parece que a água do café tá fervendo.
Enquanto espera, Júlio, para procurar as chaves do carro, olha a mesinha no canto da sala. O homem do "nosso" retrato beija e abraça uma moça linda, com uma beca de formanda. O ano é 19...o homem do retrato é ele, a moça linda é esta que está disfarçando mal as lágrimas, e o tremor das mãos na xícara de café fumegante. Ela aparece na sala, e ele a olha. Tão linda quanto nos tempos da faculdade, tão atraente quanto quando os caras da outra turma passavam olhando para trás e fazendo "comentários", o que deixava Júlio furioso de ciúmes. "Não envelheceu tanto quanto eu", Júlio pensa, "não sentiu os efeitos do tempo". "Esses cabelos loiros, que nem os do nosso filho, os olhos de um azul indescritível, iguais aos do nosso filho; mesmo com essas olheiras profundas(deve ter chorado hoje o dia todo), mesmo não tendo se penteado, mesmo com essa camiseta surrada e essas calças de moleton, a minha mulher é linda, a minha mulher é desejável ainda, já me vi muitas vezes tendo ciúmes até dos alunos dela!" "Onde é que você está com a cabeça, seu idiota? A Clara não é tão linda assim, não me ama desse jeito, não sabe quase nada de mim, não passou os apertos que nós passamos juntos; ela nem reclama quando eu ronco, quando eu e deixo a toalha molhada em cima da cama, quando eu falo que vou ficar até mais tarde no escritório; será que está certo eu deixar a minha mulher de vinte anos por causa de uma aventura que nem sei se vai dar certo, será que vale a pena apostar tudo, largar tudo por uma estranha qualquer?" "Não! Ainda dá tempo... posso ligar pra Clara, explicar tudo pra ela. Vou dizer a ela que não vou mais largar a minha esposa, que não vou mais pro Caribe, que aquele anel de diamantes vai ficar lá mesmo no Shopping. Vou falar pra ela continuar trabalhando lá na firma, se quiser. Se não, eu arranjo outro emprego pra ela com meus amigos lá do Tribunal. Se ela vai entender, é outra história. Amanhã mesmo, vou ligar pro meu sogro e falo pra ele trazer o Chiquinho pra casa antes do feriado. Digo pro Chiquinho que vou comprar aquele PlayStation que ele tanto quer, que ele volta". "Agora, será que se eu estender a mão, olhar pra minha mulher como costumava olhar quando eu ainda não namorava com ela, aquele olhar de cão vadio, será que se eu pedir perdão, dizer pra ela que eu ainda a amo, que essa tal de Clara é uma aventura inconseqüente, coisa de 'idade do lobo', ela vai me abraçar chorando, e em meio às lágrimas, vai me pedir perdão, e dizer que ainda me ama, que aqueles adjetivos impublicáveis eram só coisa de mulher ofendida, terrificada pela ameaça de perder o único homem que amara para uma "vigaristazinha qualquer"'? "Vem cá, minha amada, minha amiga, me perdoa, eu desisti de ir embora, eu não vou mais brigar com você, nunca mais, eu te amo, você me ama também, né? Então, deixa isso prá lá, vamos esquecer tudo, eu ligo depois pra Clara e explico tudo. Não chora, não... Olha aqui, vamos viajar, eu tiro umas férias, estou mesmo precisando, deixo o escritório com o Rogério, ele cuida daquilo lá pra nós. Não, não vamos levar o Francisco, não. Só eu e você, que tal? Senta aqui. Puxa, como esse sofá durou, hem? Me dá um beijo.
Apague a luz. Me abraça. Eu te amo".

(dois anos depois)

Cena: Um homem de quarenta e poucos anos, de óculos, um pouco calvo, está sentado num sofá, lendo o jornal. Ao seu lado, uma mulher loira de olhos azuis, com seus mais ou menos quarenta também, lê "Crime e Castigo" de Dostoiévski, enquanto embala um bebezinho no colo. Um rapaz de mãos dadas com uma garota morena entra e diz:

- Pai, mãe, essa é a minha namorada, a Clara.

UM ANO DEPOIS

Ontem (2o de agosto) fez um ano que fui a Faculdade de Letras pela última vez. Quem acompanha o Menino sabe o quanto eu gostava desse lugar. Sabe que lá eu fiz vários amigos, que vivi os melhores dias da minha vida; sabe dos apertos que enfrentei lá, das alegrias e tristezas que tive; sabe que eu amei e aprendi, que eu ajudei e recebi ajuda; que eu fui homenageado e execrado, que venci e que às vezes me rendi sem ter lutado. No dia em que voltei para rever tudo, um fato trágico aconteceu: o João Luciano, cadeirante, matou-se dentro de uma sala de aula, supostamente motivado pela paixão por uma professora do curso de alemão, uma de suas musas loiras. A "obcessão" pelas moças de pele clara era pública e notória no caso do João. Mas tirando essa "bizarrice", ele era um cara extraordinário, extremamente inteligente e sensível, apesar de algumas idéias um tanto quanto radicais; sentado naquele cadeira, havia um ser humano como qualquer um de nós, com todos os defeitos, mas com algumas qualidades que só ele tinha, o que o tornavam o que ele verdadeiramente era, sem a pecha do preconceito e da imbecilidade com que algumas pessoas se referiam a ele, justamente por não conhecê-lo direito. Um dos "universiotários" presentes à fatídica noite de 20 de agosto, na confusão em que se tornou o corredor, com o pessoal do SAMU, a polícia e os jornalistas, saiu-se com a seguinte pérola: "Se ele não morrer, o máximo que vai acontecer é ele ficar paralítico". Deu vontade de xingar o infeliz, mas eu fiquei calado. Não valia a pena discutir com o idiota.
Aquele dia não foi só esse episódio trágico, não. Revi várias pessoas queridas, fui celebrado e festejado por muitos, coloquei em dia várias "fofocas", matei a saudade de (quase) todo mundo. Gostaria de ter visto e de ter falado com uma certa pessoa, que não vi e com quem não falei.
Tudo isso fez um ano. Não sei se se repetirá. Não sei se as pessoas ainda estão lá.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A LÍNGUA DE NERUDA E CERVANTES

Ser funcionário público às vezes é bom. A estrutura da administração municipal oferece alguns benefícios e oportunidades, mas é preciso estar atento para não perder a chance. No meu e-mail corporativo apareceu a mensagem: "Curso de línguas estrangeiras na Secretaria Municipal Adjunta de Recursos Humanos. Inscrições de 5 a 10 de agosto." Fui conferir lá no endereço que estava no e-mail e no mesmo dia fiz uma inscrição para o sorteio das vagas. Quase nunca tenho sorte com esse negócio de sorteio, mas dessa vez eu consegui: estou fazendo o curso de Espanhol, às segundas e quartas, no Centro. A aula é de seis e quarenta às sete e quarenta da noite, horário meio puxado, difícil não chegar atrasado com o trânsito caótico de Belo Horizonte; mas no final todo esse "sacrifício" vai valer pra eu ler Neruda e Cervantes no original. O livro, "Rápido, Rápido" (custa caro!) eu consegui emprestado com a Aline, grande amiga, que aliás se estiver lendo esse post vai saber o quanto eu sou grato a ela pela prontidão e boa vontade em me ajudar nesse caso. Daqui a um ano e meio, poderei ler o El País, o Clarin, ver filmes do Almodóvar sem legendas, cantar as músicas do Carlos Galhardo com sotaque portenho, vou poder assistir aos canais de TV a cabo da Espanha.