domingo, 29 de maio de 2011

FRAGMENTOS DE VELHOS CADERNOS ENCONTRADOS NO FUNDO DA GAVETA

CONGESTIONAMENTO

Há um vídeo belíssimo da canção "Everybody Hurts" ,do grupo americano R.E.M. (assista aqui) que flagra o momento em que o trânsito de uma grande rodovia está completamente congestionado; a câmera, como um voyeur, passeia lentamente por dentro dos carros, observando delicadamente as relações de cada pessoa que está dentro dos veículos com aquele instante em que é obrigada a parar e pensar. Na "vida corrida" das grandes cidades, é na hora do congestionamento que a metrópole revela mais descaradamente o que é, um amontoado desigual e incoerente de experiências humanas, todas elas em busca de algo que está lá adiante, por isso distante do lugar em que estamos, sempre a justificar os nossos deslocamentos cotidianos. Então, por uma lógica esquizofrênica, por um conjunção atrapalhada de fatores adversos, eis que a ordem de passagem dos veículos pela via expressa se subverte: todos querem chegar ao mesmo destino ao mesmo tempo mas ninguém sai do lugar. Eu mesmo só queria ir para casa depois de um dia de trabalho, que trata justamente disso: a relação conturbada dos condutores com seus direitos e deveres, quando o descumprimento da norma coletiva submete os infratores às penas pecuniárias impostas pelo Estado. Mas está tudo parado; são seis horas da tarde de uma segunda-feira qualquer, comum é nesse horário demorar muito mais para percorrer um espaço cada vez menor. Tanta gente disputando um mesmo direito de ir e vir, negociando ou pelejando pela vida; dois milhões e meio de desconhecidos, cada um dos quais por si, às vezes encontrando e desencontrando um semelhante no caminho, mas sempre o perdendo na distância, na exigência da velocidade, na pressa pelo destino, que nos leva inexoravelmente para o fim e o termo de todas as coisas. Enquanto vivemos, queremos tudo e tudo de imediato. Por isso, um segundo a mais torna a viagem mais cansativa, como é de cansaço o olhar daquelas pessoas que se acotovelam nos pontos de ônibus e dentro deles, como é de aborrecimento a expressão dos que estão ilhados no interior das suas máquinas potentes individuais, inúteis diante da quase total impossibilidade de seguir em frente. Eu contemplo absorto a fila de olhos vermelhos à minha frente, as luzes de freio que alertam para o fato de que lá adiante há uma situação de perigo, e é então perigoso ir em frente, ninguém sabe o que será, mas todos estão indo para lá. A maioria de todos já se acostumou ao cotidiano congestionamento. Mesmo que reclamemos do poder público, mesmo que extravasemos nossa indignação com sonoros palavrões dirigidos ao motorista ao lado, ao agente de trânsito - bode expiatório da completa falta de organização que os próprios carros provocam - nós não fazemos mais nada, apenas nos submetemos, apenas nos conformamos em chegar mais tarde em casa, em perder o primeiro horário, em deixar as pessoas queridas nos esperando na porta do teatro. Para o tempo passar (o tempo não passa) alguns se refugiam num bom livro, outros na animada conversa da turma do colégio; casais de namorados torcem para encontrar dois lugares vagos lado a lado, e a dona de casa com suas sacolas de compras se esforça para arranjar-se no banco apertado. Um estudante (com certeza o que vai perder o primeiro horário) tenta uma revisão às pressas do conteúdo da prova do segundo horário; a menina de jeans e camiseta de "boys band" e piercing no nariz ouve no fone de ouvido do ipod um som tão alto que dá pra ouvir mesmo com o burburinho das pessoas; um senhor calvo de óculos ressona levemente, teve sorte em encontrar uma boa alma que lhe cedeu o lugar reservado para idosos, quase sempre ocupado por um adolescente egoísta e arrogante. Daqui, a dois bancos a frente, vejo uma linda garota que de vez em quando percebe que estou olhando para ela e volta-se para a leitura de um tratado de filosofia; observo seus óculos de aros grossos de cor vermelha, suas roupas sem griffe mas com estilo; alguém lê uma notícia de jornal: mais um crime, mais uma lei que o governo decretou, mais um escândalo envolvendo alguém do primeiro escalão, mais uma criança recém-nascida abandonada num lixão. E o trânsito que não anda, o paradoxo em desenvolvimento, as vias arteriais da cidade estagnadas, estranguladas pelo excesso de "movimento". As leis da Física dizem que a menor distância entre dois pontos é uma reta. Mas na prática, na vida cotidiana, é mais fácil procurar um caminho mais longo que seguir pelo caminho mais fácil.


ALGO DO CORAÇÃO DA RUA

para Belo Horizonte

Ando por teu passado, cidade
E é freqüente no pensamento uma lembrança
de hoje ou de antigamente
Que envolve algum de teus caminhos
Se não me cuido, chego a me perder
De ir procurar alguma coisa que deixei ficar
em certos lugares em ti
Minha cidade, tens algo de mim em tuas ruas
Meu coração vaga por entre os edifícios
indo buscar em teu infinito movimento
não necessariamente em direção ao futuro
uma razão para rever o que já não me lembrava de ter visto.

(...)

O REAL É A IMAGINAÇÃO SEM IMAGINAÇÃO

Que triste não saber sonhar
Apenas ficar alerta o tempo inteiro
Contra tudo o que não é verdadeiro
com medo de um pensamento roubar a idéia.

TENTATIVA DE EXPLICAÇÃO PARA O QUE NÃO FAZ SENTIDO

Saio-me bem em metáforas: explico tudo o que sinto por indiretas que tocam o coração. Meu alvo em movimento foge mas eu o persigo, e o surpreendo se escondendo de mim em mim mesmo. Digo o que sei com as palavras que tenho, pouco em comparação com o que não digo, que é a maior parte do discurso inteiro.

(...)

Um código secreto:
Tão secreto que só eu interpreto
Algo de que você nem desconfia
De tão desatenta que tem andado
Marquei o caminho com sinais trocados
Que te confundiram
Levando-te exatamente ao extremo oposto
da tua vontade.

1h35

Esvazio o dia já vazio
quando chego em casa;
hoje de manhã o caminhão de lixo passa
e levará o bilhete, o convite e a carta
Mato a fome, o sono e o desejo
vejo as últimas notícias de ontem à tarde
quando eu ainda não sabia de nada
Depois volto ao meu quarto, a ver miragens nas paredes
e luzes acesas nas janelas da casa ao lado
Houve um excesso de esperança, e destempero
Quase deu tudo errado
Foi um turbilhão o olhar furtivo dela

Mas há os livros ou um filme
para o caso de uma noite em claro.

(...)

Mesmo sem querer
Pense em mim
por favor

Entre seus livros de estudo
haverá um vulto do amor.

(...)
Ficou de pensar
se viria
Mas não respondeu
Prometeu lembrar de mim
Mas me esqueceu
E eu, que não fiz nada
fiquei só com as palavras.

(...)

CAOS URBANO

Eu não te acho no mundo pequeno
Mesmo que ande muito rápido
Eu te acordo com meu chamado
Mas não te entendo do outro lado:
não ouço nada do que você está dizendo
Chego sempre atrasado atrás do passado
que vou perdendo
E não te encontro no lugar marcado
pelo caminho errado
que estou vivendo.

(páro a rua/porque preciso correr para te achar/eu quero te encontrar na confusão/em que lugar dessa cidade você está: naquele edifício que nasce do chão, no meu pensamento/ou naquele carro que foge do passado?/Quem é você no meio da multidão/uma em um milhão num congestionamento?)

(...)


CANÇÃO DE NINAR GENTE GRANDE

Não faça barulho ao fugir
Vá embora em segredo
Me espera dormir primeiro
Retire-se de mim com cuidado
Leve tudo o que você quiser
Ou não puder deixar
Desfaça-se de mim de mansinho
Com palavras e gestos gentis

Mas não saia tarde demais
E nem se demore
Ande depressa ao sair
Antes de se arrepender.

AUTO CENSURA

Fique calado e páre de sonhar
Esqueça
Eu sei muito bem que tens medo
Mas sei também que demonstrar medo é fraqueza
Percebi o teu ciúme, vi quando você chorou
Ouvi que você contou o segredo
Mas vou te poupar do constrangimento público
Vá para casa, páre de falar, não beba
Fique quieto no seu canto que é o melhor lugar
E, por fim, escuta esse conselho
Não acredite em mais ninguém: nem em si mesmo.



(...)

Ela me diz que deixa de saber
e não tem porque ligar
Não tem que me ver
se eu for, ela não vai
E se eu insistir ela pode não atender
Ocupada demais em me esquecer.

(...)

Clichê original

São iguais às histórias de amor:
Todas parecem filmes
Duas horas depois ficam na memória.


(...)

estou voltando daquela noite
Já sonhamos alto
Você tinha que ir
E eu não tinha
de modo que fiquei mais um pouco por lá
Meu corpo precisava descansar
O coração podia continuar
Venho para casa e este livro
se cala
Dizendo que talvez seja melhor pensar
do que prestar atenção nas palavras

(...)

Inventei uma história
Que eu acho que é verdadeira
Nela você não existe:
é apenas uma ilusão
Eu quis te fazer do meu jeito
Meio irreal
No meu plano eu me rendia e você ganhava no final.

(...)

O Coração da Rua

Ando páginas atrás no tempo
no lugar em que existe o pensamento
O caminho exato de muito tempo antes
Quando eu ia e sabia seguir
Sinais teus pelo deserto
Habitado de inúmeros seres estranhos
Selva, cidade
Ruas e ruas
Torres de vidro, aço e concreto
Presas armadilhas
Caos urbanos
Milhões de olhares amarelos
Ecos de tudo
amor, paredes, esquecimento
Bastou-me sair à rua
para voltar o tempo.

(...)

O hábito me ensina
a compreender a falta
Questão de saber deixar o tempo
Fazer o necessário com o esquecimento
Acostumar-me com o cotidiano ermo
Até que, por si só, chegue a seu termo
Apagando seus sinais ao longo do caminho.

(...)

O CÉU DOS CIENTISTAS

Algo em tudo é mero acaso
Parte do todo é meio vago
Pouco se sabe sobre o resto.

O ERRO DE EROS

Quem te falou, que isto que
sobressai no corpo
É amor?
O desejo de fato é o pai do destino
Foi ele quem criou o tempo
e de acaso se disfarçou
Como um monstro suave
de olhos negros.

(...)

Vou inventar que te esqueço
Para não ter que te contar porque não consigo
E disfarçar um sorriso de tal jeito
Que não se perceberá que estou sofrendo.

(...)

O DIA DA CAÇA

Querendo sem querer
Laçado por não se proteger
Preso pelo prazer
de ser vencido
Enganado para ser acolhido e alimentado.

(...)

Também o contrário do que eu sinto
me passa pela cabeça
e contesta a minha razão
São mil os motivos do não
Mas apenas de uma coisa eu tenho certeza
a dúvida que há no meu coração
Põe pontos de interrogação
nas palavras.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

ESSAS MULHERES

Sherazade me enganou
Fazendo-se passar por Ariadne:
O fio era, na verdade,
Corrente

ESTA É A CIDADE

Um senhor anda apressado, trajando terno escuro e com a pasta executiva, provavelmente está atrasado para alguma reunião; a moça de branco vai daqui a pouco aprender mais alguma coisa sobre os ossos do corpo humano; o homem de amarelo e azul olha o envelope colorido e procura nas fachadas dos edifícios o número do destinatário; o rapaz de uniforme apita estridente e agita freneticamente os braços, apressando o movimento dos carros; a mãe ralha com o menino que teima em olhar para a vitrine da loja de brinquedos; ela tem pressa, pode perder o ônibus, e o outro só daqui a sei lá quanto tempo; um rapaz de banho tomado e camisa nova olha para a direita e para a esquerda, espera alguém que já se demora, parece; deve ser uma mulher, talvez um outro rapaz; ele olha para o relógio e franze a testa; um menino esfarrapado e sujo, o nariz escorrendo, estende a mão pequenina e com sua pequenina voz pede uma moeda, mas na verdade o que ele quer mesmo talvez seja um pouco de carinho e de atenção. Esta é a cidade. Casais de namorados de mãos dadas perambulam bobos pelo parque, naquele doce alheamento sobre o futuro de sua relação, quando a tendência é mais dia menos dia tudo terminar numa tola discussão na porta do cinema sobre que-filme-vamos-ver; uma senhorinha de uniforme laranja arrasta a vassoura de piaçava pela calçada, no mesmo instante em que uma garota de óculos escuros, i-pod e tênis all-star acaba de lançar o papel do chicletes que masca displicente; um carro importado sem cerimônia estaciona na faixa de pedestre; a dona de bengala e bíblia olha conformada a rua por onde então terá que passar, isso se os sacos de lixo deixarem; um mendigo parado com uma expressão abobalhada, diante do cartaz de uma seminua musa de cerveja; um operário abraça a namorada num canto escuro da calçada; uma melodia tristonha sai do rádio de um cego que pede esmola e um menino oferece, numa bandeja de doces, o sabor da vida. Enquanto isso, os cartazes anunciam a felicidade a preços populares para o rebanho triste que anda em fila indo para casa. Esta é a cidade. Uma sirene pede passagem ao tráfego intenso; alguém está morrendo nesse instante atado aos tubos de oxigênio ou ao aparelho desfibrilador. Na outra esquina, alguma criança com corpo de moça vende a ilusão de um amor que não sente, de um prazer que nunca experimentou a quem tem pouco dinheiro para comprá-lo. Esta é a cidade.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

DA RUA AMIANTO

Sinceramente, essa arquitetura não me interessa mais
Essa pintura antiga das fachadas não faz mais diferença
A novidade de tudo nessa cidade é algo que mais me atrai
Eu vi ouro e prata em outros tempos
E grandes senhores de quem fui rei
Mas essa noite fui sem saber o mais pobre dos homens
Diante da dona do meu país
Pelas ruas de pedra eu deixei passar os instantes
Quase sem acreditar no que vi
Como se fosse realmente real e não um teatro como a vida
que eu sempre li
Para o bem da verdade, essas histórias da fantasia
Não me dizem nada mais e é
Melhor ver do que sentir
- que o sonho só existe quando não se vive.

domingo, 22 de maio de 2011

ONZE E MEIA

Vai para casa então
E lá se deite
para perder o sono
Lembre-se do que eu disse essa noite
E nunca mais se esqueça
Ligo amanhã
quando acordar.

A LINGUAGEM DAS MÃOS

Olho mais para suas mãos do que em seus olhos
Porque aquelas mais que estes desenham estrelas e caminhos
Criam idéias, ilusões
Mas eu imagino
Que contornos teriam na ausência da visão.

Vejo mais claro pelo gesto que pela explicação
Que um só deles contém tudo o que é preciso:
Se fosse dito teria menos sentido.

O SEGUNDO SINAL

Já fui lá fora mais de não sei quantas vezes. Olhei a rua de um lado e de outro, e mais de uma vez vi uma garota morena de cabelos curtos, de vestido indiano e bolsa de crochê. Mas não era você. O relógio está marcando 20:55, e o espetáculo do Galpão está marcado para as 21. Estamos no horário de verão. Começou hoje. Adiantar o relógio em uma hora. Tanto que quando eram seis da tarde - a hora em que eu cheguei aqui - ainda estava dia claro. Cheguei tão cedo porque queria ser o primeiro a chegar, os lugares não estão marcados, e eu ia ficar de plantão na porta do teatro para pegar a primeira, no máximo a segunda fila. Gosto de ficar bem perto do palco, ouvir o ruído dos passos dos atores sobre o piso de madeira, notar detalhes mínimos do espetáculo, prestar atenção em tudo. E o mais ainda era ter a expectativa de ver você aparecer lá longe na rua, vir se aproximando de mim, me reconhecer no meio do povo, como se estivesse ali só por minha causa. Você iria me dar um abraço, um beijo no rosto. Então nós iríamos nos atualizar sobre nossas novidades, você iria me contar sobre as agruras de se formar, sobre os problemas na sua casa, sobre os amigos comuns que sumiram, sobre o que você anda lendo. Eu ia falar sobre a chatice do meu emprego, sobre a minha filha, sobre eu ter mudado de casa outra vez em menos de um ano. Enquanto esperássemos pelo início da peça, tomaríamos uma xícara de capuccino na cafeteria do teatro -está fazendo frio - e ficaríamos zapeando as prateleiras da livraria. Mas já são 21h, o primeiro sinal já tocou, e você que não chega. Passa pela minha cabeça, e aperta o meu coração, a possibilidade de você não vir, me dar um "bolo" como daquela vez ano passado. Depois você se justificou dizendo que era por "coisas de mulher", essas coisas de todo mês. Eu disse que tinha entendido, que "tudo bem", mas assisti o espetáculo sozinho, com um gosto amargo na boca; fiquei um tempo triste e aborrecido, mas depois que você apareceu lá na faculdade - como se não tivesse desaparecido - e eu esqueci tudo no mesmo instante em que te vi de novo. 21:02. A platéia lotada já, casais juntos, famílias inteiras na mesma fila, todos ansiosos e alegres, bem arrumados para a ocasião. E eu na porta do teatro ainda, olhando para a esquerda e para a direita, vendo você em todas as moças que passam, mas nenhuma delas é você. Nem precisa mais da bolsa de crochê, nem do vestido indiano, nem dos cabelos curtos. Não precisa nem mesmo ser morena, confundo todas com aquela a quem espero ansiosamente, a única que me interessa em toda a cidade. A única que eu amo. 21:05. Segundo sinal. Ah, não, de novo, não!
Então, de repente, lá no Mercado das Flores, uns cento e tantos metros de onde eu estou, aponta uma garota de vestido indiano, cabelos curtos e bolsa de crochê. Morena. É ela! Em cima da hora! Os passos apressados dizem que ela está ansiosa também, que veio quase correndo pelas ruas desde o ponto em que ela desceu do ônibus dela. Quando me vê, aflito, sorri: "Desculpa. Esqueci do horário de verão".

sábado, 21 de maio de 2011

A IDÉIA DO FIM

No plano e no espaço onde penso que existo,
Apenas um ponto infinitesimal e finito
diz que sou algo menor do que realmente me sinto
e que um dia qualquer não serei nem isso
Nem haverá de mim qualquer sinal.

QUASE O TEMPO

Eu e você não nos encontraremos
por muito tempo
Depois de hoje quem sabe
Se haverá outro acaso
Numa cidade tão grande

Nessa noite conversaremos
por muitas horas
sobre a saudade.