sábado, 19 de maio de 2012

SANTA TEREZA

(versão final)

Um conto de Olavo Duarte

- Carlos!
- Camila!
- Sérgio!
(sábado à noite. Um boteco em Santa Tereza, como sempre cheio de gente. Lugar aonde se vai nos fins de semana à noite, desculpa porque "Belo Horizonte não tem mar". Díficil é conversar no meio desse vozerio, dos gritos dos garçons, carros estacionados em lugar proibido, calçadas repletas de mesas)

(Sérgio falando): Ois, como estão?
(Camila falando): fez boa viagem, Sérgio?
(Sérgio responde): deu problema no Congonhas. Por isso cheguei só hoje cedo aqui. Nem fui ver meu pai ainda...
(Carlos continua em silêncio, já que ele ainda não foi mencionado)
(Sérgio falando): Carlos, seu malandro! Até que enfim cê conseguiu, hem? A Camila não é osso?
(Carlos, finalmente): Você que era muito ciumento, Sérgio. Não dava pra chegar nela com você na área...
(os três riem alto)
(Carlos, continuando) ... a minha sorte foi ter aparecido a Laura, aquela ruiva lá de Brasília. Até hoje eu agradeço a ela por isso. E por falar em Laura, cadê ela?
(Sérgio): Sei lá, ouvi falar que ela tá com uma companhia de balé em algum lugar na Inglaterra, Escócia, tipo isso aí...
(Camila falando, depois de tomar um gole de vinho tinto. Está frio hoje em Belo Horizonte. Mais cedo choveu um pouco): Pois é, garotos. Homem não pode ver uma bunda nova que logo se bandeia pro lado dela, né?
(Sérgio faz que vai falar alguma coisa, mas Carlos interrompe. Tem que falar alto, porque nesse momento começa a tocar uma batida música dos Mutantes na Jukebox. Olha carinhosamente para a moça ao seu lado, brincando com o cachecol dela):- MAS EU NÃO SOU DESSES, né, Camila? O que me atraiu nocê foi seus olhos verdes, não foi?
(Camila responde, ar irônico): ...sei...olhos verdes, né? Se não fosse aquele jeans JUSTÍSSIMO que eu tava usando no dia da calourada, você não estaria atrás de mim até hoje...
(Ainda Camila, botando mais lenha na fogueira): Por falar em bun ... quer dizer, em mulheres, é verdade que você casou lá nos States?
(Sérgio): Casei. Só pra pegar o Green Card. Separamos um ano depois e ela foi pro México. Era feia pra burro. Mas acho que estava apaixonada por mim. Quem não se apaixona? (olha pra Camila, pisca o olho, joga um beijinho)
(Os três rindo alto agora)
(Sérgio, mudando de assunto, mas ainda falando de mulher): Carlos, até hoje não me conformo...aquela menina, como é mesmo o nome dela? Ah, a Sílvia, Silvinha, a do Laboratório de Informática, a estagiária de Computação. Vocês dois (faz o gesto)...sabe o que eu quero dizer...
(Camila, surpresa): CARLOS!!!QUE SILVINHA? Aquela doidinha com cara de nerd? Não acredito, Carlos!!!
(Carlos): MENTIRA DELE, CAMILA!!! Ela é que dava em cima de mim na cara dura. Toda vez que eu ia lá pegar uma impressão ou gravar um CD, ela ficava com aquele negócio de "tem certeza que não quer mais nada, Carlinhos? ...mas eu já tava com você. Não aconteceu nada, nem naquele dia que ela foi na festa lá em casa, lembra? naquela semana que a gente tava brigado, por causa do, por causa do...
(Sérgio): É, por minha causa... aliás, Carlos, sua direita é forte pacas, hem? Só de pensar, já dói...
(Carlos): E você me deu uma na boca do estômago...
(Sérgio): Quantas você tinha bebido aquele dia?
(Carlos): Sei não, mas você bebeu mais, com certeza.
(Sérgio): Lembra do Fernando?
(Camila): qual, aquele cadeirante?
(Sérgio): É verdade que ele se matou? Li na Internet...
(Carlos): Ele era obcecado por aquela loira lá do Inglês. Contam que ele entrou na faculdade armado, o povo da segurança não percebeu...era pra ser na cantina, no meio de todo mundo. Mas ela não passou no caminho pra sala de aula. Então ele subiu lá no quarto andar. Dois tiros.
(Sérgio): ele atirou nela?
(Camila): atirou, mas não acertou. Depois ele atirou na cabeça dele. Morreu lá no Odilon Behrens.
(Sérgio): ...poxa vida...
(Camila): mulher nenhuma vale isso tudo...
(Sérgio, jocoso): Olha só quem fala...
(Camila, simulando irritação): Esses doidos aí, acham que mulher é um pedaço de carne...saem matando e morrendo por qualquer coisa. Tipo: "se não é minha, não vai ser de ninguém!"
(Carlos, calado até esse momento, dá sua opinião): Eu acho que...
(Sérgio, interrompendo): Logo você, Carlos? Não foi você que pichou "Camila, eu te amo" na parede da sala de Alemão? Quanto dias de suspensão você tomou, hem?
(Carlos, indignado, mas clamando piedade): Mas eu não matei ninguém... ou matei?
(Gargalhadas agora, só Sérgio e Camila)
(Carlos, tentando falar, mas a música dos Titãs e o fim das gargalhadas dos dois amigos não deixam): ...pois é, gente, eu fiz besteira mesmo, mas eu tava louco. Depois que ocê mais esse cara aí (pára de rir, Sérgio, não tô achando graça!) brigaram na minha frente, eu achei que você ia correr pros meus braços...não era isso que você fazia sempre que esse bruto do Sérgio te magoava?
(Sergio, irônico de novo, mas desse vez em tom mais suave): Grande Carlos, o "consolador das meninas do terceiro ano".
(Carlos, agora mais calmo, exibindo a namorada ao lado, como um trófeu): deu certo, não deu? Olha só o que eu tomei docê.
(sérgio, mudando de assunto): Quando vai ser o casório? Eu vou ser convidado, não vou?
(Camila): o Carlos tem que terminar aquele negócio lá do filme. O pai dele disse que não vai mais dar o dinheiro. A captação lá na secretaria deve sair em novembro, eu acho.
(Sérgio): Então é verdade, mesmo? O filme, aquela história toda, finalmente?
(Carlos): É! Viu? Você ficava me zoando, lembra? me chamava de quê mesmo?
(Sérgio e Camila, juntos, rindo. Ele "enquadrando" o ambiente com os polegares e os indicadores em forma de tela): "Woody Allen do boteco do Santa Tereza"
(Carlos): Vocês dois, não entendem nada de cinema...só de blockbusters americanos. Detestei ir com vocês naquele tal de Sexta-Feira 13...na verdade, eu tava era com ciúme da Camila, indo sozinha ao Minas Shopping com o garanhão do primeiro ano...
(Sergio): Segurando vela...
(Camila): é mesmo, reparei. Você não se desgrudou de nós dois o dia todo. Tava até chato.
(Carlos): fim da história. Vocês foram embora. E eu fiquei chupando dedo. Pra onde vocês foram naquele dia? Dallas ou Caribe?
(Sérgio, jocoso): Não. Foi pra um daqueles ali da Paraná mesmo. Ou Santos Dumont, sei lá... tava sem dinheiro.
(Camila): Deixa de ser bobo, Sérgio! Não deixei você encostar um dedo em mim. Você me deixou foi em casa, mesmo. Tava furibundo porque eu não dei pra você.
(Sérgio, ainda mais jocoso): Não fica falando isso na frente do seu noivo, Camila...
(Carlos finalmente abre a boca): Pois é, né Sérgio? ... eu fui mais esperto do que você desta vez. Bem feito você não ter conseguido vaga pro Festival de Inverno. Ouro Preto, noite de lua cheia. Naquela república lá, duas da madrugada. (repete o gesto obsceno). Já sabe o que rolou, não sabe?
(Camila, muito envergonhada): Carlos...

(Nem notam os três amigos que o bar já está praticamente vazio, são mais de quatro da madrugada, a Jukebox agora toca Milton Nascimento, "Itamarandiba". Os garçons agora descansam na rua, alguns fumam, outros discutem a rodada do fim de semana do Campeonato Mineiro; agora, Camila, Sérgio e Carlos estão em silêncio. Três amigos mais de dez anos separados pelo mundo. Carlos sempre amara Camila, mas o seu melhor amigo, Sérgio, era o namorado dela, embora não a amasse tanto quanto ele. Eles estavam juntos, os três, em quase tudo, menos nas turmas de Inglês. Brigaram juntos mais de uma vez, foram os três juntos ao enterro da vô de Camila, estavam juntos quando Sérgio, alcoolizado, bateu o carro na saída do Campus. Algumas escoriações e alguns dias depois, Sérgio reaparece na faculdade, justamente no dia da primeira briga e do
primeiro beijo de Carlos e Camila. Mas um dia Sérgio não estava mais junto de Camila e Carlos. Um voo em Confins, com destino aos Estados Unidos os separa. E lá se vão dez, quase onze anos. Essa noite de sábado em Santa Tereza foi combinada pela Internet, depois que Carlos consegue finalmente encontrá-lo no Facebook. Tentou todos os "Sérgio Almeida", mas o amigo era "Sergim.almeida_256", com underline e tudo. Achou o codinome certo por causa de um quarto colega, que até agora não tinha aparecido nessa história: o Fred, "frederico.rodelhausen@gmail.com, o único Frederico Rödelhausen que poderia existir na face da terra).

(Voltando à mesa, agora é Carlos quem fala): puxa, não vi que tava tarde assim. Vamos, Camila?
(Sérgio): tá cedo, gente. Nem cinco horas ainda.
(Camila): Amanhã, quer dizer, hoje, tem o aniversário da tia Júlia. Ela vai fazer cem anos. Não dá pra perder. Lembra dela, Sérgio? A de Sete Lagoas. O Carlos é que vai dirigir. Não gosto de dirigir na BR. Ele tem que dormir, já está meio altinho, não é, meu bem?
(Sérgio, imitando a voz de Camila, jocosamente): "Já está meio altinho, não é, meu bem?" Ai, ai...cara fresco...
(Os três riem alto. O garçom vem falar: "Por favor, pessoal. Temos que fechar. Obrigado por terem vindo".
Carlos, Camila e Sérgio saem para a rua. Uma brisa suave balança as folhas das árvores da Praça Duque de Caxias. Estão os três abraçados. Camila entre os dois. Sérgio (ou seria Carlos?) começa a cantar baixinho, e os outros dois acompanham: "Mudaram as estações/e nada mudou/mas eu sei que alguma coisa aconteceu/ tá tudo assim tão diferente/se lembra quando a gente/chegou um dia a acreditar/que tudo era pra sempre/sem saber/que o pra sempre... (Carlos esquece a letra, Camila lembra: "É sempre Acaba"... depois é assim, ó: "Mas nada vai conseguir mudar o que ficou... (os três continuam a música)/Quando penso em alguém só penso em você/E aí, então, estamos bem/Mesmo com tantos motivos/Pra deixar tudo como está/Nem desistir, nem tentar agora tanto faz/Estamos indo de volta pra casa...*)

A manhã nasce na rua Mármore.


*A canção é "Por Enquanto", de Renato Russo, do álbum "Legião Urbana" de 1985




Nenhum comentário:

Postar um comentário