sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A RUA


Meu assunto o dia todo são as ruas. É nela em que ocorrem as infrações de trânsito, tema cotidiano do meu trabalho. Ruas. Avenidas. Praças. Da minha cidade, eu as conheço quase todas, de tanto ter que me referir a elas na minha atividade diária. Digitadores me perguntam o tempo todo onde fica tal rua, se tal rua cruza com tal avenida, se o número tal fica num bairro ou no outro. Conheço-as intimamente, as ruas. Por algumas eu tenho uma relação de afeto, gosto de ir até elas, nelas passear. Desses lugares, que o Dicionário Houaiss define como uma palavra derivada do latim "ruga", "sulco" e que significa "via pública urbana ladeada de casas, prédios, de muros ou jardins", eu guardo muitas das minhas memórias afetivas da cidade, do que vivi em todas elas. Dia desses escrevi um texto chamado "As Esquinas" do qual reproduzo aqui um trecho: "A canção dos Beatles, “In My Life”, nos diz “(...) há lugares dos quais vou me lembrar por toda a minha vida”. (There are places I'll remember all my life). E é assim exatamente o que acontece comigo. Tem certos lugares em Belo Horizonte que fazem parte da minha história. Se eu voltar a eles pelos meus pés ou através do pensamento, todas as memórias daqueles tempos viverão novamente. Basta alguém mencionar o nome de uma rua, basta-me passar por uma esquina para que as lembranças me levem de novo aos momentos que ali vivi. Tenho a memória dos meus passos, sei de cor os caminhos que segui e por que razão estive lá"
(...)
Agora me lembro de uma canção de Djavan, chamada, não por acaso, "As Esquinas", que diz "só eu sei as esquinas que atravessei". Caminho por toda a cidade, algumas vezes sem saber porque ando tão longe de casa, sem o que procurar e sem urgências para resolver. Simplesmente saio de casa, e sigo por um caminho indeterminado, que vai sair em algum lugar onde eu jamais havia estado antes. Gosto de caminhar vendo o movimento incessante, caótico e contraditório, de sentir a pulsação da cidade. O burburinho e o barulho me atraem e me prendem como música, as cores das vitrines reluzem nos meus olhos, as revistas, as placas, os vestidos das moças, os edifícios que espetam o céu e furam o ar pesado, as filas das pessoas nos caixas dos bancos, nos pontos de ônibus, cada um em um milhão que vem e vão, cada um em seu universo, cada um uma cidade em si mesmo: tudo isso é interessante para mim, tudo me comove e espanta, e eu vejo isso como se nunca antes tivesse visto. No meio de toda essa profusão, de repente me interessa um ramo florido de um ipê teimoso em ser belo no meio da fumaça preta, do concreto sujo, do cartaz apelativo de um produto qualquer. Eu percebo o olhar de um mendigo, o olhar de um ser humano esquecido pela multidão e vejo nele alguém que se parece com todos, que se parece comigo, que é da mesma espécie que eu; eu paro para deixar o turbilhão passar, o cordão de monstros mecânicos, de máquinas de aço seguir seu curso rumo a tudo o que não é passado, em direção ao distante; paro para ver o trânsito que leva tudo necessariamente para o seu fim e termo. Paro e fico olhando e meu olhar se perde seguindo o andar de uma desconhecida que nunca mais vou ver, mas que por um instante é bela de se ver e que a outros olhares atrai. Olho a cidade ao redor e quase tudo me interessa, como se fosse uma criança que pela primeira vez fosse a um parque de diversões, como o enamorado que nunca antes havia visto o rosto da sua amada; na França, me chamariam "flaneür", esse tipo especial de andarilho, que vaga sem rumo, um ser errante, alguém que deambula pela cidade sem um propósito aparente, buscando não se sabe o quê em sua caminhada. Ele nunca anda apenas por andar, para simplesmente ir a um lugar determinado, com uma hora definida para estar lá. O destino é o caminho, o objetivo da busca é o caminhar, ir-se sem plano ou roteiro. Simplesmente sair à rua, como se isto o vivificasse. Acho que sou assim. A rua, em todas as suas particularidades, me atrai e fascina.
Estou para ler desde muito tempo o A Alma Encantadora das Ruas, do jornalista, escritor, cronista e acadêmico João do Rio, nascido João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921). Já na primeira linha da obra, ele enuncia “Eu amo a rua”. João do Rio, ao morrer, foi “homenageado” com uma pequena rua em Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro; a rua foi batizada com o nome de Paulo Barreto, pelo qual também era conhecido o escritor. Pouco para quem faz uma louvação à rua, em todos os seus aspectos urbanísticos e sociais. Pois se trata mesmo de um estudo profundo e abrangente, não propriamente acadêmico, sobre este espaço tão peculiar de sociabilidade que é a rua. Entre duas esquinas, todas as manifestações do humano são possíveis: os anúncios, os gritos, a fala animada das turmas de amigos, os afagos dos casais – hetero e homossexuais – a pressa e a vagareza dos passos, o apelo do mendigo por uma moeda, o religioso que prega, e o bêbado que erra os passos; na rua se exalta, se ostenta, se arroga, a violência se impõe. Num ambiente quase saturado, finito e confinado, limitado por leis, demarcados os espaços, convivemos todos e todos nos enfrentamos, estranhos entre si, cada qual em sua própria idiossincrasia, cada um em sua rua particular. João do Rio olha a tudo isso com o olhar menos corriqueiro, que observa as minúcias, os detalhes. O “Alma Encantadora das Ruas” jaz inerte na minha estante, à espera de que eu ande pelas ruas do Rio de Janeiro do início do século XX como se eu lá estivesse ou lá vivesse, à época em que o livro foi escrito.

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