sexta-feira, 28 de agosto de 2009

UM HOMEM LIVRE

Acostumei a ver esse muro na minha frente. Nem percebia mais que havia um portão e já tinha esquecido que um dia ele seria aberto pra mim. Do meu crime eu não vou falar nessa história, só digo que foi coisa de dez anos que fiquei preso. Eu não sabia escrever antes de entrar nessa prisão. Quem me ensinou foi o Professor, que até ano passado cumpria pena por homicídio, matou a mulher e o amante dela a tiros. Na rebelião, foi a vez de ele levar um tiro, esse de um polícia. Lembro que sempre o filho mais novo dele (o único que ainda vinha visitar o pai) trazia um livro. Ele lia pros colegas de cela. Era engraçado ver aqueles homens rudes, uns condenados por tráfico, uns por assalto à mão armada, uns por homicídio,ficarem encantados com aquelas histórias maravilhosas que o Professor contava. A minha preferida era a do Zadig, de um tal de Voltaire, contando sobre um princípe persa que viveu altas aventuras; tinha outra muito legal que era a daqueles hobbits (acho que é assim que escreve), uma história de um anel mágico que fazia muito poderoso quem o possuísse; aqueles caras, que nunca haviam tido na vida um momento de fantasia, vibravam com as histórias que o Professor trazia, tinha até torcida pelos personagens. Uma vez, o Rubão, que pegou uns anos por causa de um carregamento de maconha, teve que disfarçar as lágrimas, quando soube que Romeu e Julieta tinham morrido; "Eu matava esse padre burro, desgraçado, que idéia mais sem noção" disse ele, quando o Professor contou que a idéia de dar um remédio pra Julieta parecer como morta foi do Frei Lourenço; não adiantava dizer que era uma estratégia bolada pelo padre pra que Romeu pudesse resgatar a amada e fugir com ela: Rubão batia as mãos na mesinha, irado, xingando de tudo que era palavrão o nome do santo homem; era bacana ver aqueles caras rindo que nem crianças (acho que eles se tornavam as crianças que nunca haviam sido) quando o Professor narrava as peripécias de Dom Quixote e do fiel escudeiro Sancho Pança. O Chico do Canivete e o Malaquias até fizeram um teatro com a história; no dia da apresentação, veio o Diretor da Penitenciária pra assistir; deu até na televisão, que um grupo de presidiários estava montando uma peça baseada em Dom Quixote de La Mancha; a biblioteca do Professor serviu de cenário e a Dulcinéia era o Manuel, vestido de mulher (todos sabiam que ele era gay e que tinha umas histórias esquisitas com o Rubão). Ano passado o presídio foi de novo reportagem na televisão, mas dessa vez não era ficção. A rebelião que matou o nosso querido Professor (morreu tentando defender a biblioteca) também levou o Rubão, o Malaquias, o Manuel, o Chico do Canivete, os dois primeiros de tiro e os outros, juntos com mais cinqüenta, no incêndio do pavilhão três, o nosso. Eu escapei todo chamuscado, tive que sair pra ir pro hospital de queimados, voltei pra cela dois meses depois.Como só faltava seis meses pra acabar minha pena, fiquei quietinho lá dentro, me comportei; cuidei da biblioteca do Professor e ainda recebia a visita do filho dele, que continuava trazendo livros; essa semana, minha última na cadeia, ele trouxe o livro daquele cara que atravessou a remo o Oceano Atlântico, o tal de Klink; diz ele na dedicatória que é pra eu "ganhar o mundo, enfrentando as ondas do mar bravio"; o rapaz como que me adotou como pai, depois da morte do Professor. Hoje estou saindo, e o rapaz disse que eu podia passar uns dias na casa dele, que a esposa não se importaria, que sabia que o sogro gostava muito de mim, que era eu o melhor amigo dele.
Estou indo embora daqui: ficar preso claro que não é bom, e ser ex-presidiário deve ser pior ainda, os outros vão te olhar com aquela cara de espanto, ninguém vai te dar emprego, você só vai arrumar mulher se for na zona. Mas eu guardo boa lembrança desse lugar: vou lembrar sempre do Professor contando a história das Mil e uma Noites prum bando de caras sentados no chão do pátio do banho de sol, eles com os olhos brilhantes e sonhando com as suas princesas, com suas Sherazades que haviam ficado lá fora, do outro lado do muro da cadeia; vou lembrar sempre do dia que eu consegui pela primeira vez escrever alguma coisa, e que o Professor bateu palmas e riu alto; o guarda achou que ele tava ficando doido. "Nada não, seu guarda, é que esse menino finalmente está deixando de ser burro", disse ele. O guarda deu de ombros, olhou pra mim com uma expressão neutra e continuou a ronda pelas celas. Eu a partir daí me entusiasmei e até me inscrevi naquele programa que alguém escreve para um prisioneiro e ele responde. Foi assim que eu conheci a Rosalva; ela me escrevia todo mês, dizia que se apaixonara por mim,e que também lera os "Cem Sonetos de Amor", do Pablo Neruda; ela disse que adorou os poemas (horríveis) que eu escrevi pra ela, e respondeu com uma cartinha perfumada. Os caras da minha cela cairam de gozação em cima de mim, me chamavam de Don Juan (a história do sedutor era contada pelo professor). Perdi a conta das vezes que sonhei com ela, tinha um retrato 3x4 colado no espelhinho ao lado do meu catre; Rosalva era morena, e só de imaginar seu corpo, que eu não via, me dava alguma coisa que eu não sentia desde que eu ainda estava na rua e tinha as minhas mulheres. Da última vez que eu escrevi pra ela, eu contei que já estava pra sair, mas até hoje ela não respondeu, não sei porque. Só sei que todo dia eu enchia o saco do guarda do pavilhão três, que era e ainda é meu amigo; Getúlio, esse o nome do guarda, era o que distribuía as cartas pros presos.
Aliás, é ele que tá me chamando agora. Ele está com uma chave na mão, uma expressão zombeteira na cara, como se dissesse "Aí, seu trouxa, vai pra rua, encarar a realidade". Mas ele me dá um aperto de mão, um tapinha nas costas e me diz: "Acho que cê vai querer voltar pra cadeia quando ver como é que tá lá fora. Vai com Deus, cara".
O portão pesado se abre. Um passo e eu deixo dez anos na minha vida. Dez anos encarcerado, vendo "o sol nascer quadrado" como se diz na linguagem de malandragem. Um vira-lata fuça um monte de lixo na calçada; os carros passam deixando a fuligem do escapamento; as prostitutas se espalham, os botecos estão cheios de desocupados; uma viatura passeia por ali, dois ou três mal-encarados dentro, fazendo ronda; eu indeciso com meus primeiros passos livres em dez anos, não sei pra onde ir, não lembro mais o ônibus que vai pro meu bairro, parece que os números mudaram. Entro num bar, peço uma bebida (Getúlio, escondido, me deu uma nota de cinquenta),bebo e sinto como se nunca tivesse saboreado um belo copo de cerveja na vida. Estou livre, e não sei o que fazer. Acho que vou passear no parque, ver as mulheres, sentar num banco de praça e ficar ali só olhando, pensando na vida. Quando começa a anoitecer, vou pros lados da zona, mas o que sobrou da nota de cinquenta não paga um programa nem com a prostituta mais barata do lugar. Resolvo então procurar o caminho da casa de minha mãe, se é que ela vai querer me ver; durante esses dez anos, dá pra contar nos dedos quantas vezes ela foi me visitar - acho que ela tinha mais era vergonha de ter um filho na cadeia. No fundo, no fundo, como toda mãe, ela me amava. Pergunto daqui e dali, e descubro o número do ônibus; a rua de casa não mudou muito: ainda tem o sacolão, o boteco, e agora tem uma tal de "lan-house" onde era a Pentescostal; minha mãe sempre tentava me levar pro culto, mas quando eu ia era pra ficar zoando os hinos, botando palavrão nas letras dos cânticos de Louvor. No dia que eu fiz aquilo (não vou contar o que é), minha mãe estava no culto e foram buscar ela pra me ver na delegacia. Imagino a vergonha que ela deve ter passado, coitada, entrando no carro da polícia, no meio do povo, e o pastor dizendo pra ela que em nome de Jesus o filho seria inocentado.
Toco a campainha. Uma senhora de óculos, encurvada pela idade, andando com dificuldade, vem atender, olhando desconfiada para este homem estranho à porta; quando ela percebe que sou eu, ela me olha, enchendo os olhos de água e diz só isso: "meu filho, entra.
Tá frio aí fora".

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