segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O SOFÁ (VERSÃO DE TEREZA, MULHER DE JÚLIO)

Tem razão: esse sofá é meio cafona mesmo. Hoje mais cedo, reparando bem nele, notei que está puído e encardido, de tanto o Chiquinho deixar cair chocolate nele. Lavar não adianta mais. O moço que eu chamei várias vezes já disse: "Dona, não tem mais jeito, não. O jeito é comprar um novo". Mas eu olho pra esse sofá e me lembro do dia que a gente foi morar junto. Lembro de você e o Pedro carregando ele escada acima no nosso primeiro apartamento; lembro que você dormiu nele aquele dia que a gente brigou a primeira vez, mas tarde da noite eu senti a sua falta na cama e vim pra sala. Eu me deitei do seu lado, você me abraçou, balbuciou alguma coisa incompreensível e voltou a dormir. Lembro de você brincando de aviãozinho com o nosso filho, você deitava no sofá e levantava o menino lá no alto, imitando o barulho do motor; a gargalhada dele dava gosto de ouvir. A gente era feliz, ou eu pensava que a gente era, Júlio. Feliz até você esquecer um papel no bolso da calça, tinha "Clara" e um número de celular escrito nele. Você tentou explicar, se complicou, e no fim teve que dizer que estava com ela já um tempo, aí que eu entendi aqueles estranhos "serões" no escritório. Me sinto meio culpada por isso, de uns tempos pra cá eu ando meio "caída", meio descuidada, já não tenho mais aquele "fogo" que eu tinha quando a gente se conheceu. Se não fosse por mim, Júlio, você não tinha tomado coragem aquele dia da calourada, até hoje estaria me olhando com aquele olhar de cachorrinho abandonado, que era até bonitinho, sabe? Além disso, essas brigas da gente já estão no limite, você tem toda razão de ficar chateado comigo, eu arranjo qualquer pretexto pra te tirar do sério, eu tenho feito de tudo pra te atazanar. Agora que você resolveu de vez pular fora, eu não tiro a sua razão. Nenhum homem gosta de mulher que fica de marcação cerrada em cima, com ciúme até dos amigos; "você está me sufocando", você diz sempre; "você não acredita quando eu falo a verdade", dói admitir, mas você tem razão. Agora que eu sei que você não está mentindo, que essa tal de Clara existe mesmo, que não é só miragem da minha imaginação ciumenta, eu estou morta de medo, nunca senti isso antes, nunca pensei que pudesse te perder, ainda mais depois de tantos anos de casados. Chorei o dia todo hoje, nem banho eu tomei, tentei dormir à tarde, e já liguei pra faculdade avisando que não vou dar aula à noite. O Chiquinho está na casa daquele amigo dele, só chega mais tarde, eles dois estão fazendo um trabalho de história, eu acho; papai vai levar ele pro sítio amanhã e só volta depois do feriado, terça-feira; pode deixar, eu converso com ele, explico direitinho, apesar de que eu é que não estou entendendo nada. Não estou precisando de dinheiro, não. Também não estou preocupada com as contas, obrigado por se lembrar delas por mim. Minha cabeça não tem espaço pra essas coisas. Tudo o que me aflige, o que me desorienta, o que me faz avançar o sinal, é essa história de eu te perder, de você ir embora, de me trocar, sua mulher a vinte anos, por uma garotinha que você pôs pra trabalhar no seu escritório, uma "vigaristazinha qualquer" que vai tomar o meu lugar na sua cama, que vai comprar outro sofá com você. Até aquela viagem que você tinha planejado pra gente, você vai com ela; aquele anel que eu te mostrei, lembra? Pois é, o que eu fiquei sabendo é que você vai comprar um mais bonito ainda pra sua amante...ai, que palavra horrível, Júlio! Parece que a sua mulher virou uma coisa sem valor, um traste inútil, que quando já não presta mais pra nada você vai lá e compra uma novinha, sem defeito, que não está gasta pelo tempo. Não quero conhecer ela, não...vê-la só vai piorar a minha situação, Júlio; eu vou me comparar a ela, vou ver por quem e porque você está me trocando. Com certeza ela é bem mais nova que eu, e está atrás de um homem bem de vida que nem você. Quando é que você a conheceu, mesmo? Foi naquele dia que você fez as entrevistas com os novos estagiários ou naquela festa na casa do professor Alfredo? Agora não importa mais, Júlio. Não precisa mais explicar nada, eu vou tentar entender, vou tentar continuar viva depois dessa. Não, que drama que nada! Eu nunca passei por isso, eu nunca te perdi, não sei como reagir, não tenho força pra isso. Já está ficando tarde, está frio lá fora; você quer aquela blusa azul da faculdade emprestada? Depois você manda o motoboy da firma me devolver lá no meu trabalho. Você não mudou nada, Júlio: continua falando que não sente frio, depois quando fica gripado, eu é que tenho que dar uma de enfermeira...ah, é...nem isso eu posso ser mais. Pede pra essa Clara cuidar bem de você, ser carinhosa que nem eu sou... Diz que você gosta de doce de abóbora com coco...eu sei fazer, aposto que ela não sabe nem fritar um ovo...vocês vão ter empregada? Hoje a Dona Iolanda não veio, o marido dela está doente, falei que ela pode ficar com ele no feriado. Não, ele está internado ainda. Ela vai te agradecer...mês passado ela até me perguntou sobre isso, se você não podia adiantar mesmo o pagamento dela, ela mostrou a receita, absurdo mesmo o preço dos remédios, ela morre de vergonha de te pedir alguma coisa... "Sei lá, o Seu Júlio pode querer me mandar embora", Quê isso, Dona Iolanda! A senhora está com a gente a tanto tempo! A senhora é que nem a avó do Chiquinho! Falando em empregada, vou fazer um cafezinho pra gente, quer? (Fica mais um pouco). A chave do Corsa? Tá ali, ó. Na mesinha, do lado do nosso retrato. Vou lá ver o café.
"Tereza, sua imbecil! Você vai deixar ele ir fácil desse jeito? O que essazinha tem que eu não tenho? Tá certo que ela é mais novinha, mas eu sei do que esse cara gosta, eu entendo ele, eu tolero os piores defeitos dele...até aquela mania de colecionar carrinhos, o que muita mulher deve achar infantil...aqueles fios brancos no cabelo deixam ele tão charmoso, aquelas rugas que já começaram a aparecer no canto dos olhos, meu Júlio é um homem tão bonito quanto no dia em que veio a primeira vez, tão novinho , tão bobinho, me perguntar qual era a diferença entre "injúria" e "difamação". Pra dizer a verdade, eu é que quis ele, eu é que tomei a iniciativa, e o coitado, tão inexperiente, tão tímido, tadinho; com certeza, a cantada fajuta na calourada foi o Pedro que ensinou pra ele...mas deu tão certo que até hoje, ou melhor, até agora, o resultado estava ao meu lado! Não vou deixar ele me ver chorando, e vou tentar disfarçar que estou tremendo que nem vara verde...vou lá pra sala, vou ser forte ao menos por enquanto. Só quando eu ouvir o barulho da chave trancando a porta do lado de fora, o elevador descendo, o motor do carro ligado e o portão fechando é que vou me desfazer em lágrimas, cair no chão que nem uma criança e vou acordar amanhã deitada no sofá, com uma olheira desse tamanho, uma dor dilacerante no peito e um vazio imenso no coração...
Vou lá pra sala... quer ver como você é forte, Dona Tereza?

Hã? Como? Como assim não vai mais? Como assim desistiu? Verdade, Júlio? Você ainda me ama? E a Clara? Sério? Vai falar com ela? Tem certeza? Meu Deus, meu Deus!Meu marido me ama!Desculpa Júlio, desculpa, meu amor, tudo que eu falei era mentira, você não é nada daquilo que eu falei! Tive tanto medo, meu amor! Não ia conseguir viver sem você!Me perdoa, pelo amor de Deus, eu te amo. Não vou brigar mais com você, nunca mais. Ai, estou tão cansada, estou exausta, Júlio. Chorei o dia todo, sabia? Nem tomei banho, você quer a sua mulher assim mesmo, cheirando mal, nem lavei o cabelo, vai ver que nem escovei os dentes...Ai, Júlio, você não mudou nada, mesmo...

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