sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O SOFÁ



Vou deixar aqui aquele sofá horrível que você quis comprar, achava que combinava com a cor das paredes. Eu não gostei, mas pra te agradar - eu sempre fazia isso - pus no meu crediário. Naquela época, o salário de um funcionário público metido a estudante de direito só dava pra isso mesmo: pra pagar a faculdade e os carnês. Nós nos amávamos tanto que nem isso era problema. Mas a gente foi morar junto, veio o Francisco, você teve que trancar e seu pai cortou sua mesada. Foi difícil convencê-lo a vir visitar o neto, mas você sabe como são os avós: o velho se encantou no ato pelo garoto. Por isso, acho que ele não vai pensar duas vezes em levá-lo pro sítio esse fim de semana e no feriado, assim o menino não vai sofrer tanto quando o pai dele for embora de casa. Depois você explica pra ele porque que papai teve que se mudar. Você sabe que a gente sempre escondeu do menino as nossas brigas, evitava falar alto perto dele. Mas eu acho que o Chico percebia quando algo não estava bem. Lembra quando a professora dele ligou pra dizer que o garoto estava chorando no banheiro da escola? Pois é: ele sabe de tudo, mas é tão inteligente que lida com isso sozinho, finge que não está nem aí, que fica na dele. O Chico é tímido que nem o pai, com quatorze anos ainda não está paquerando as meninas do colégio. Eu tinha vinte e cinco quando te conheci, no terceiro período, quando você estava dando monitoria de Direito Penal. Ficamos uns dois semestres naquele chove-não-molha, até o Pedro (sempre o Pedro) te chamar para aquela fatídica calourada. "Ah, vem você também, Júlio", disse ele. Fui a contragosto, detestava festas, ainda mais calouradas, aqueles cabeludos bêbados e drogados esgoelando aqueles rocks horríveis, mas eu estava "decidido" a de umas vez por todas abrir o jogo, pra te ganhar ou perder sem engano, que nem na música da Marina. Pois é, nove meses depois, a barriguda mais linda do mundo deu à luz um garotinho loirinho e bochechudo que batizei com o nome do meu avô materno. Vivemos no aperto uns dois anos, até eu me formar. Graças ao professor Alfredo, aliás o Desembargador Alfredo Ramos Nunes, rapidamente eu consegui arranjar um bom emprego e nome na carreira. O apartamento mudou, mudou de bairro, mudou o salário, mas o sofá dos tempos de faculdade ficou, lembra os tempos felizes, você sempre diz. Mas pra onde eu vou agora ele não vai. Porque você não vai junto. Clara até que perguntou se você não gostaria de conhecê-la, poderiam até ser amigas, não estamos virando inimigos só porque estamos nos separando, ela diz. Mas você não quer, eu aceito. Depositei o primeiro cheque da pensão do Chiquinho na sua conta, paguei a mensalidade do colégio, e se ele precisar do dinheiro pro intercâmbio diz pra ele que mês que vem eu vou abrir uma caderneta no banco. Não se preocupe com o carro; as multas e o IPVA já foram pagos, eu assumi aqueles pontos do dia que você passou o sinal, lembra? Então, acho que é isso. Tá aqui o endereço e o telefone do escritório novo, pode ser que Clara atenda, seja simpática com ela, tá? Um café? sim, eu aceito. Não, não tá fazendo frio. Pode deixar, eu tenho uma blusa no carro. Não se incomode comigo, não. A Dona Iolanda não veio hoje? E o marido dela, já saiu do hospital? Vou ver se adianto o salário dela, coitada...esses remédios, tão caros...Tudo bem, eu espero. Você viu as chaves do Corsa? Ah, sim, no lugar de sempre, ali, perto do "nosso" retrato. Você vai deixar ele ali? Vai na cozinha, parece que a água do café tá fervendo.
Enquanto espera, Júlio, para procurar as chaves do carro, olha a mesinha no canto da sala. O homem do "nosso" retrato beija e abraça uma moça linda, com uma beca de formanda. O ano é 19...o homem do retrato é ele, a moça linda é esta que está disfarçando mal as lágrimas, e o tremor das mãos na xícara de café fumegante. Ela aparece na sala, e ele a olha. Tão linda quanto nos tempos da faculdade, tão atraente quanto quando os caras da outra turma passavam olhando para trás e fazendo "comentários", o que deixava Júlio furioso de ciúmes. "Não envelheceu tanto quanto eu", Júlio pensa, "não sentiu os efeitos do tempo". "Esses cabelos loiros, que nem os do nosso filho, os olhos de um azul indescritível, iguais aos do nosso filho; mesmo com essas olheiras profundas(deve ter chorado hoje o dia todo), mesmo não tendo se penteado, mesmo com essa camiseta surrada e essas calças de moleton, a minha mulher é linda, a minha mulher é desejável ainda, já me vi muitas vezes tendo ciúmes até dos alunos dela!" "Onde é que você está com a cabeça, seu idiota? A Clara não é tão linda assim, não me ama desse jeito, não sabe quase nada de mim, não passou os apertos que nós passamos juntos; ela nem reclama quando eu ronco, quando eu e deixo a toalha molhada em cima da cama, quando eu falo que vou ficar até mais tarde no escritório; será que está certo eu deixar a minha mulher de vinte anos por causa de uma aventura que nem sei se vai dar certo, será que vale a pena apostar tudo, largar tudo por uma estranha qualquer?" "Não! Ainda dá tempo... posso ligar pra Clara, explicar tudo pra ela. Vou dizer a ela que não vou mais largar a minha esposa, que não vou mais pro Caribe, que aquele anel de diamantes vai ficar lá mesmo no Shopping. Vou falar pra ela continuar trabalhando lá na firma, se quiser. Se não, eu arranjo outro emprego pra ela com meus amigos lá do Tribunal. Se ela vai entender, é outra história. Amanhã mesmo, vou ligar pro meu sogro e falo pra ele trazer o Chiquinho pra casa antes do feriado. Digo pro Chiquinho que vou comprar aquele PlayStation que ele tanto quer, que ele volta". "Agora, será que se eu estender a mão, olhar pra minha mulher como costumava olhar quando eu ainda não namorava com ela, aquele olhar de cão vadio, será que se eu pedir perdão, dizer pra ela que eu ainda a amo, que essa tal de Clara é uma aventura inconseqüente, coisa de 'idade do lobo', ela vai me abraçar chorando, e em meio às lágrimas, vai me pedir perdão, e dizer que ainda me ama, que aqueles adjetivos impublicáveis eram só coisa de mulher ofendida, terrificada pela ameaça de perder o único homem que amara para uma "vigaristazinha qualquer"'? "Vem cá, minha amada, minha amiga, me perdoa, eu desisti de ir embora, eu não vou mais brigar com você, nunca mais, eu te amo, você me ama também, né? Então, deixa isso prá lá, vamos esquecer tudo, eu ligo depois pra Clara e explico tudo. Não chora, não... Olha aqui, vamos viajar, eu tiro umas férias, estou mesmo precisando, deixo o escritório com o Rogério, ele cuida daquilo lá pra nós. Não, não vamos levar o Francisco, não. Só eu e você, que tal? Senta aqui. Puxa, como esse sofá durou, hem? Me dá um beijo.
Apague a luz. Me abraça. Eu te amo".

(dois anos depois)

Cena: Um homem de quarenta e poucos anos, de óculos, um pouco calvo, está sentado num sofá, lendo o jornal. Ao seu lado, uma mulher loira de olhos azuis, com seus mais ou menos quarenta também, lê "Crime e Castigo" de Dostoiévski, enquanto embala um bebezinho no colo. Um rapaz de mãos dadas com uma garota morena entra e diz:

- Pai, mãe, essa é a minha namorada, a Clara.

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