domingo, 29 de junho de 2008

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN

“Caixinha de Surpresas”: Uma resenha de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”.

Por Olavo Duarte

Atenção : este texto contém "spoilers", revelações sobre o enredo do filme. Se você ainda não o assistiu, fica a seu critério prosseguir ou não na leitura.



O que você faria se encontrasse uma caixa cheia de objetos que pertenceram a uma criança que morou no seu apartamento a quarenta anos atrás? Talvez você não desse importância nenhuma ao fato. Coisa sem valor, você diria. Mas se seu nome é Amélie Poulain e você é a protagonista do ótimo “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001, direção de Jean Pierre Jeunet, com Audrey Tautou e Mathieu Kassowitz) encontrar o dono da tal caixinha torna-se uma missão. Amélie vive só em um pequeno apartamento alugado no simpático bairro parisiense de Montmartre e trabalha como garçonete numa cafeteira do bairro, o Deux Moulins. Nada de mais extraordinário acontece na vida da sonhadora e tímida Amélie, a não ser a convivência com os esquisitos freqüentadores do botequim. Uma é hipocondríaca e atende numa pequena banca de cigarros. Um vive vigiando a vida da ex-namorada que também trabalha na cafeteira. Outro é um escritor fracassado e melancólico; outro é... era de se esperar que no meio de tanta gente maluca, absurdamente solitária e desencantada, não poderíamos ser brindados nunca com um grande filme. Mas somos. Amélie já não vem de um prognóstico familiar muito promissor: seu pai, Raphaël Poulain, vive recluso na periferia de Paris desde a morte da mulher e prefere a companhia de um anão de jardim a de outros seres humanos. Quando criança, Amélie nunca tivera muito contato com o mundo exterior. Seu único “amigo” era um peixinho de aquário chamado “Cachalote”. Trancada em casa, sem amigos, desenvolve uma prodigiosa imaginação, uma visão poética do mundo que ela carrega nas malas quando decide sair de casa aos dezoito anos e ganhar a vida por conta própria. Até o episódio da caixinha de brinquedos, sua vida transcorre sem grandes acontecimentos. Decidida a encontrar o dono dos objetos, ela sai procurando pelas ruas de Paris um tal Bredoteau. Ela pergunta o endereço para o dono de uma quitandinha na rua, Collignon (Urban Cancellier), um sujeito desprezível e mal-educado, que sublima a sua frustração com tudo e todos humilhando o empregado Lucien (Jamel Debbouze). Mas a procura parece caminhar para o fracasso até que Amélie esbarra com mais um inusitado personagem: o velho do apartamento ao lado, outro recluso e solitário parisiense chamado Raymond Dufayel (Serge Merlin), um obscuro pintor, portador de uma doença óssea rara que o torna frágil como um graveto. Dufayel, conhecido como “homem de vidro”, é obcecado por uma obra de Renoir chamada “Almoço com Barqueiros” e, mais especificamente, com a personagem que ocupa o centro da composição, uma jovem com um copo d’água (veja a figura abaixo) não por acaso muito parecida com nossa heroína.



O homem de vidro dá a Amélie a chave do enigma: o homem que procurava não é “Bredoteau” e sim, “Bretodeau”, com “to” e não “do”, como em “toto”.
Enfim, Amélie tinha a chance de mudar a história. Sem se deixar ver, ela provoca uma reviravolta na vida do desiludido Bretodeau. A na sua própria. Na do espectador também.
A partir dessa quase banal fatalidade, Amélie passa a se interessar pelo cotidiano das pessoas a sua volta e, sempre anonimamente e com estratagemas geniais, interferir nos pequenos – e grandes - dramas dessas pessoas. Assim, Amélie não vê problemas e obstáculos em copiar as chaves do apartamento do malvado Collignon e vingar, com requintes de crueldade, as humilhações que este impõe ao pobre Lucien; coisas do tipo trocar a pasta de dente do quitandeiro por um creme para pés, botar o relógio para despertar às quatro da manhã, fazer de um prosaico abajur uma verdadeira máquina de eletrochoque. Afinal, se depender da nossa amiguinha, ninguém sofre, ninguém vive só, ninguém é humilhado. Tanto é assim que ela chega a inventar que a tal hipocondríaca, Georgette (Isabelle Nanty) está interessada no ciumento Joseph (Dominique Pinon) – o que vive vigiando a rotina da ex-namorada. A vida no monótono Deux Moulins nunca mais será a mesma. E ninguém sabe quem foi o anjo da guarda que está causando tantas revoluções, juntando pessoas, encontrando caixas perdidas, vingando o sofrimento alheio. E ela está bem ali, aquele rostinho tímido e inocente. E ninguém sabe também que a própria Amélie se refugia na solidão e não está feliz por causa disso. Ela própria, a despeito de fazer a felicidade de todo mundo, está se sentindo só, não espera encontrar ninguém com quem dividir seu famoso bolo de nozes, ninguém para chegar em casa e abrir a porta, ninguém para brincar com seu gato.
E ela também não sabe que um belo dia, não sem antes, como de costume, “fazer o bem sem olhar a quem”, se atrasa no serviço e não consegue chegar no metrô em tempo de pegar o último trem pra casa. Bom, o jeito é achar um lugar pra dormir. Logo ali tem uma cabine de foto, dessas automáticas. A noite, é claro, não é das melhores. Só que o acaso, sempre ele, tem um efeito devastador na vida de qualquer ser humano. Quem poderia adivinhar que no caminho ela ia dar de cara com o esquisito Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz), remexendo embaixo da cabine com uma régua e recolhendo pedaços de fotos rasgadas? Fora esse estranhamento inicial, Amélie não teria visto de novo jamais o rapaz se uma irresistível curiosidade não a levasse a segui-lo: no caminho, Nino perde acidentalmente uma bolsa e – claro e de novo – o destino fabuloso calha de colocá-la nas mãos de nossa heroína. Rever o rapaz torna-se mais uma das obsessões de Amélie. Só que ela quer negar pra si mesma que é um tal de “amor a primeira vista”, coisa em que ninguém mais acredita hoje em dia. Todos nós sabemos que ela se apaixonou de imediato pelo sujeito, com quem parece compartilhar a estranhice. Só loucos mesmo colecionam fotos rasgadas 3x4 de estranhos metodicamente reconstituídas e coladas em ordem cronológica e geográfica. Só loucos mesmo trabalham de balconista numa sex-shop e, às quartas, num trem-fastasma (a cena mais sensual e linda do filme). Nino é o par perfeito de Amélie. Só que Nino também ignora quem é a moça que anonimamente – de novo – faz chegar a suas mãos o tal álbum. E arde de curiosidade – apaixonada como tudo que é mistério – em conhecê-la. Só que a garota coloca o cara num labirinto e dá uma de Ariadne às avessas: mais confunde e propõe enigmas do que tenta resolvê-los para tranqüilizar a si mesma e a seu ansioso coração. Assim, o jogo de gato e rato envolve todos os personagens da história: o “homem de vidro”, o garoto Lucien, a colega de Nino na sex-shop (Eva) e outros anônimos, todos dão sua parcela de contribuição para aproximar o casal. Dessa vez, não é Amélie que se envolve com os problemas do mundo, mas é o mundo quem se encarrega de dar o caminho para Amélie passar. E levá-la aos braços de seu Nino.
Tudo bem, parece sim – e é – uma historinha água-com-açúcar –feita sob medida para românticos – mas qual é o problema? Críticos carrancudos a chamaram de “Madre Teresa” made in Paris. Num tempo em que o “my, myself and I” é a regra, uma pessoa que entrega o coração aos estranhos é mesmo um alienígena. Ainda mais se a pessoa em questão se sente só contra o mundo: a tentação é de encarar tudo com raiva, de jogar na cara dos outros a própria incompetência afetiva, a frustração amorosa, o fracasso profissional. Poucos devolvem em ternura, em afeto a cara feia do mundo exterior. Poucos inventam cartas de amor para juntar dois desconhecidos, poucos ajudam um cego a “ver” a rua. Amélie Poulain é a prova – ainda que ficcional – de que o mundo tem jeito. Bastam um pouquinho de imaginação, cola, papel e tesoura. E uma caixinha de metal enferrujada. Não é muito difícil ser feliz.

Assista ao trailer no Youtube:
(um comentário sobre esse trailer: as legendas em português - não devem ser as legendas originais do VHS/DVD - trazem um erro grave. Lucien fala a Dufayel sobre um (ou uma) tal Le Didi. Não é nada disso: na verdade, o comentário é sobre Lady Di, a princesa britânica, cuja morte em Paris, em agosto de 1997, é um dos motes da trama.)

3 comentários:

  1. Taí um filme que preciso assistir! Beijos.

    ResponderExcluir
  2. Achei esse seu post no Google e amei! Queria transcrevê-lo no meu blog ... Posso? rs! Abs, Ana

    ResponderExcluir
  3. irei transquever no meu blog tb
    outros-sentidos.blogspot.com

    ResponderExcluir